Por Amir Labaki
O ano mágico de 2025 para o cinema
brasileiro quanto a seu reconhecimento internacional (Oscar para “Ainda
Estou Aqui”, de Walter Salles, dupla premiação em Cannes de “O Agente
Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, Urso de Prata em Berlim para “O
Último Azul”, de Gabriel Mascaro) alcança agora também as livrarias.
Basta conferir a reedição comemorativa, organizada por Carlos Augusto
Calil, de “Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte” (Companhia das
Letras/Cinemateca Brasileira/Sociedade Amigos da Cinemateca, 636 págs,
R$ 199,90), versão em livro da tese de doutoramento de Paulo Emílio
Sales Gomes (1916-1977), publicada originalmente há meio século (e um
ano) pela Editora Perspectiva/Edusp.
O relançamento (talvez mais justo
falar em reconstrução) representa até aqui o apogeu do hercúleo e
minucioso trabalho capitaneado por Calil, desde 2007, de reapresentação
ao leitor do século XXI da obra escrita do maior intelectual brasileiro
dedicado a estudos cinematográficos no país. Como toda boa saga, há um
prólogo -e longo. Quase quatro décadas contam-se desde seu ponto de
partida, com a publicação de “Paulo Emílio, Um Intelectual na Linha de
Frente” (Editora Brasiliense/EMBRAFILME/Ministério da Cultura, 402
págs., 1986), uma antologia de textos dispersos, para além das colunas
publicadas por Paulo Emílio entre 1965 e 1954 no Suplemento Literário de
O Estado de S. Paulo (EMBRAFILME/Pax e Terra, 1981/82), organizada por
Calil e Maria Tereza Machado, com colaboração de Ismail Xavier.
Graças à devoção editorial do
discípulo, cujo detalhamento esgotaria os limites desta coluna, a obra
escrita de Paulo Emílio, publicada e inédita, a ensaística e a ficcional
tardia, tem progressivamente conquistado a visibilidade merecida. Entre
os grandes marcos, destaquem-se o aparecimento em 1991 de “Vigo, Vulgo
Almereyda” (Edusp/Companhia das Letras/Cinemateca Brasileira, 174 págs),
o fascinante retrato do pai, militante anarquista, do cineasta-cometa
Jean Vigo (1905-1934), a quem Paulo Emílio dedicou na França de 1957 a
biografia pioneira, e a edição em três volumes, “Três Mulheres de Três
PPPÊS”/“Cemitério”/”Capitu” (roteiro, com Lygia Fagundes Telles), pela
Cosac Naify (2007/2008), da íntegra do Paulo Emílio ficcionista.
Há exatamente uma década, agora
pela Companhia das Letras, funda-se a nova coleção. Superado o desafio
documental primeiro, chegara a hora de emprestar bússola para melhor
navegar por sua extraordinária jornada intelectual. Para fazê-lo,
demonstra Calil, é insuficiente compilar. Cumpre conferir,
contextualizar e interpretar.
Três volumes reordenando
tematicamente a crítica e o ensaísmo de Paulo Emílio lutaram o bom
combate desde então. “O Cinema no Século” (2015) sistematiza os textos
sobre a história do cinema internacional. O embate com obras,
personalidades e desafios do cinema brasileiro nos provoca e interroga
em “Uma Situação Colonial?” (2016). Numa coletânea da Penguin/Companhia
das Letras, “Cinema e Política” (2021), textos entre 1935 e 1977
recuperam a paixão política do militante de esquerda que precedeu e
continuou inspirando o crítico, professor e gestor cinematográfico. De
quebra, ainda em 2015, a mesma coleção continuou a matizar-lhe o perfil
com uma nova edição do póstumo “Três Mulheres de Três PPPÊS”.
Para o quarto volume crítico, “Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte –
Edição de 50 Anos”, o norte é o mesmo, mas, frente a outro tipo de
obra, um estudo crítico e biográfico do período de formação e de
iniciação cinematográfica de um dos pioneiros do cinema brasileiro, numa
pequena cidade mineira de peculiar eclosão cultural modernista,
impunham-se readequações de procedimento. Assim, Calil radicaliza a
aplicação à pesquisa, à escrita e à recepção acadêmica e jornalística do
grande livro dedicado ao cinema brasileiro por Paulo Emílio do método
utilizado pelo próprio Paulo Emílio para investigar, descrever e
refletir sobre a primeira fase do cinema de Humberto Mauro (1897-1983), a
de seus quatro longas-metragens silenciosos iniciais, o desaparecido
“Na Primavera da Vida” (1927), “Thesouro Perdido” (1927), “Braza
Dormida” (1928) e “Sangue Mineiro” (1930).
No método de Carlos Augusto Calil
para a reedição pulsa a mesma “paixão do concreto” do de Paulo Emílio,
na síntese genial que seu amigo e contemporâneo Antonio Candido detectou
no grupo deles da revista Clima (1941-1944) -e formulação certeiramente
recuperada pela luz feminina daquela geração, Gilda de Melo e Souza,
orientadora de Paulo Emílio no doutoramento de 1972, em ensaio presente
no novo volume. A “restauração” do livro envolveu um esforço em duas
frentes principais, desenvolvido com o aporte de experientes e jovens
colaboradores da Cinemateca Brasileira.
Para a revisão e o estabelecimento
do texto, Calil e Olga Futemma confrontaram a versão publicada em 1974
aos originais manuscritos e datilografados. A fundamental coleção de
imagens, sobretudo fotogramas das produções, fotos e documentos, que
dialoga com o texto na primeira edição, passou por pente fino, sob os
cuidados de pesquisadores como Yasmin Rahmeier e Caio Brito,
corrigindo-se imagens invertidas e eliminando-se riscos e altos
contrastes com ganhos preciosos em nitidez. Um supletivo sobre todo o
processo marcou o lançamento da reedição no último dia 24 na Cinemateca.
A tacada final se encontra no
posfácio, recuperando a gênese do Mauro por Paulo Emílio e a recepção
crítica a seu estudo, e sobretudo nas quarenta páginas finais no
apêndice. Calil nos convida a adentrar uma espécie de máquina do tempo
que nos transporta para o intercâmbio intelectual da cerimônia acadêmica
de arguição, nos idos de 1972, da tese “Cataguases e ‘Cinearte’ na
Formação de Humberto Mauro” no Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Para tanto, compila os
registros possíveis das intervenções de quatro dos cinco participantes
da banca: Alfredo Bosi, Francisco Luiz de Almeida Sales, Gilda de Melo e
Souza e Walnice Nogueira Galvão. (Infelizmente nada nos alcançou da
elocução de Ruy Coelho).
A reconstituição daquele
incandescente painel de ideias revela tanto sobre o contexto intelectual
do momento do aparecimento da obra-farol de Paulo Emílio quanto seu
“Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte” desbravou sobre o contexto
histórico, cultural e cinematográfico da fase primeira de Mauro. A
“restauração” não é assim mais apenas isso, mas muito mais: nos oferta
uma obra, mais fiel a ela mesma do que na impressão original, e as
chaves para seu tempo. Bem-vindos ao tesouro recuperado.