Por Amir Labaki
É a hora e a vez de Jorge
Bodanzky. Nada mais justo -e mais raro, num país grassado pelo etarismo
em todas as áreas, a artística e a cinematográfica longe de exceção.
Aos 82 anos, Bodanzky lança nesta
semana, após a pré-estreia no É Tudo Verdade 2024, “As Cores e Amores de
Lore”, um retrato delicado e pioneiro da artista visual
germano-brasileira Eleonore Koch (1926-2018), discípula de Volpi de
fascinante personalidade. Logo após o lançamento, o cineasta e fotógrafo
viaja a Berlim para a estreia internacional no Fórum Especial da 75ª
Berlinale, no dia 17, da versão restaurada de seu maior clássico,
“Iracema, Uma Transa Amazônica” (1974), co-dirigido por Orlando Senna.
Até abril, o público de Fortaleza pode visitar na Pinacoteca do Ceará a
itinerância da vigorosa exposição “Que País É Este? A Câmera de Jorge
Bodanzky Durante a Ditadura Brasileira, 1964-1985”, organizada no ano
passado pelo Instituto Moreira Salles (IMS) com um panorama de sua vasta
produção audiovisual e fotográfica, em curadoria de Thyago Nogueira.
Não resisti a romper com o formato
tradicional desta coluna para entrevistar Bodanzky sobre este momento
especialíssimo. O foco central foi naturalmente o novo filme, que parte
de uma vereda autobiográfica similar às de suas lembranças da
experiência formadora na Universidade de Brasília (UnB) da virada dos
anos 1960 para os 70 em “UnB - Utopia Distopia” (seleção especial, É
Tudo Verdade 2020).
Iniciei perguntando-lhe sobre a
origem do projeto. "Venho trabalhando neste filme, As Cores e Amores de
Lore, há mais de 10 anos, desde quando a Cosac Naify fez um livro sobre a
Lore. Trabalhando neste projeto, o jornalista Orlando Margarido me
ligou perguntando: quem é Rosa Bodanzky? É minha mãe. Ao Lore citar esse
nome, me interessei. O que inicialmente me motivou a conversar com a
Lore foi a história da minha mãe. A chance de falar com uma pessoa que
pudesse me contar as coisas da minha mãe que, na época eu não tinha
maturidade para perguntar para ela. Lore é de uma geração um pouquinho
mais nova do a da que minha mãe. À medida que as nossas conversas
avançavam, se tornando mais íntimas, a história dela começou a
prevalecer”.
Foi intencional, pela primeira vez
em longa-metragem em sua obra, mergulhar na vida e obra de uma
criadora? “Não tem assim um fator decisivo da escolha de fazer um filme
como o retrato de um artista, foi acontecendo com o tempo”, respondeu
Bodanzky. “Eu não a conhecia e a Lore me recebeu muito bem. Desde o
primeiro encontro gravei as nossas conversas, mais de cinco anos de
encontros. Tudo isso eu sempre com uma pequena câmera fotográfica,
Canon, e com o celular. A história também aconteceu muito em função da
minha maneira de filmar. Eu sempre estive sozinho com ela. Eu mesmo
fazia a câmera e o som da própria câmera. Era uma conversa só nós dois,
mesmo eu já tinha esquecido a câmera. Os assuntos eram muito variados e
alguns recorrentes; a questão do casamento, a questão dos filhos, a
questão profissional. Isso foi juntando e fui passando para a montadora
Bruna Callegari, que foi organizando o material, mas ainda sem uma ideia
clara do que que isso poderia render. As conversas foram durante os
últimos cinco anos da vida dela. Foram mais cinco anos depois que ela
morreu até a realização do filme.
“Ela deixou para mim o arquivo
pessoal dela, uma quantidade enorme de fotografias, de negativos, um
diário que ela escreveu durante a vida toda, agendas, e uma
correspondência incrível, mais de 2000 cartas, em alemão, em inglês, em
português, em letra cursiva, batidas à máquina. Impossível de ver tudo
isso, eu olhei apenas as cartas que ela citava em nossas conversas. O
resto do material ainda está para ser lido para ser descoberto".
"Depois veio a pandemia e esse
material ficou aqui em casa. Conseguimos um recurso para finalização e
já eram 10 anos de convivência com esse material. A coisa estava bem
madura. O tempo foi um fator importante. O que mais me marcou nesses
anos de conversa foi a sua maneira livre de viver. Eu enxergava minha
mãe assim também. Um aspecto importante também foi o olhar da Bruna, o
ponto de vista de uma mulher. Enxergar a Lore como uma mulher
libertária, livre, quase revolucionária na sua forma de ser, acho que
foi a grande motivação do filme”.
O lançamento da cópia digitalmente
restaurada de “Iracema, Uma Transa Amazônica”, como parte da mostra do
IMS-SP no ano passado, reafirmou a extraordinária contemporaneidade do
filme, em sua forma híbrida e em seu registro da devastação amazônica,
ao completar seu cinquentenário. Indaguei-lhe se algo de novo se revelou
também a ele nesta revisita. “O restauro incrível foi feito a partir
dos originais na Alemanha. Imaginar que era um filme 16 mm. A imagem é
tão bonita, tão rica, tão cheia de detalhes, que eu não tinha chance de
observar antes. E o som também trouxe uma profundidade, uma gama de
ambiência, que eu não tinha percebido no filme. Rever esse filme, além,
claro, de todo o seu conteúdo, a forma com que ele se apresenta é um
colírio para os meus olhos".
A exposição “Que País É Este?”
abrange sua obra, incluindo registros inéditos em super-8, do período de
21 anos de regime militar. Haveria uma marcante diferença numa nova
mostra, com sua produção nestes últimos 40 anos? “Não seria muita
diferente, porque os problemas todos continuam aí, do mesmo jeito”,
sustenta Bodanzky. “Tudo aquilo que aconteceu na ditadura, no projeto
dos militares, em grande parte ainda está aí -em outra forma, talvez com
outro tipo de violência, não tenha a tortura explícita, mas está tudo
aí. Tanto é que, nos filmes que eu fiz, a temática não variou tanto
assim. O título dessa nova mostra seria o mesmo, “Que País É Este?”. A
gente continua perplexo com esse país, que continuo retratando em meu
trabalho”. Este é Jorge Bodanzky.