Por Amir Labaki
Antes mesmo de consumar-se nas
urnas, a derrota de Kamala Harris para Donald J. Trump, na eleição
presidencial dos EUA na semana passada, já ganhara nos cinemas sua
autópsia fílmica, no documentário “Carville: Winning Is Everything,
Stupid” (Carville: vencedor é tudo, estúpido), de Matt Tyrnauer. A
campanha eleitoral da candidata democrata não está no filme, que se
encerra precisamente em 21 de julho passado, com a desistência a tentar a
reeleição do presidennte Joe Biden, mas a substituição mais que tardia
já ajuda a entender o fracasso.
O retrato do estrategista político
James Carville, 80 anos recém-completados, não poderia ser mais
oportuno. Carville se consagrou ao liderar a equipe de planejamento da
triunfante campanha presidencial de Bill Clinton em 1992. O documentário
clássico sobre os bastidores daquela disputa, “The War Room” (1993),
dirigido no calor da hora por D. A. Pennebaker e Chris Hegedus, já o
apresentava como o mais excêntrico protagonista.
Você provavelmente lembra dele, em
trajes sempre informais e careca, de fala direta e autoirônica, como
convidado incontornável de entrevistas a canais jornalísticos a cada
ciclo eleitoral. John Malkovich compôs bem o tipo num episódio há três
décadas de Saturday Night Live.
Tyrnauer alterna o filme entre um
eixo público e outro privado. Na atual vida cotidiana, Carville
dedica-se a uma rotina intensa de viagens para palestras e entrevistas e
ao casamento com a também estrategista política, mas dos Republicanos,
Mary Matalin, numa relação iniciada na época em que ocupavam posições
similares em campos opostos do embate de Clinton contra o então
presidente George Bush. Mesmo distante do dia a dia das campanhas,
acompanha-se seu engajamento nos debates referentes à campanha
presidencial do Partido Democrata. Trechos certeiros de “The War Room”
estabelecem o paralelo entre as disputas de 1992 e 2024.
Um registro de arquivo recupera
Carville em plena “sala de guerra” da campanha de Clinton, sustentando
num quadro o trio de mensagens cruciais para derrotar a tentativa de
reeleição de Bush pai. Um: “mudança versus mais do mesmo”. Dois: “a
economia, estúpido” -a fórmula que entrou para o vocabulário eleitoral
planetário. Três: “não esqueça de assistência médica”.
Nas filmagens contemporâneas em
que aborda o confronto originalmente entre Biden e Trump, Carville surge
como um dos pioneiros e mais enfáticos críticos da nova candidatura do
atual presidente, enfatizando o peso da idade (para os dois
concorrentes, frise-se). De quebra, ele soa ainda um alerta frente à
sensação de distanciamento entre o discurso eleitoral democrata e as
preocupações cotidianas da América profunda. Bingo, duas vezes, como
confirma a retumbante vitória eleitoral dos Republicanos, com Trump
retornando à Casa Branca em janeiro próximo com uma vigorosa base nas
duas casas do Legislativo federal.
O documentário foi reeditado para
incluir como a presciente resistência de Carville à candidatura Biden
se concretizou com a renúncia em julho, a partir da constrangedora
performance do presidente no debate com Trump três semanas antes. A
vice-presidente Kamala Harris entrou na arena eleitoral com apenas três
meses para firmar-se na conjuntura mais polarizada talvez da história.
Entre 1992 e 2024 há, entre tantos, um abismo de civilidade, datando o
tripé da triunfal campanha de Clinton, mas ele continua didático para
iniciar-se a análise da derrota de Harris.
Começando pelo terceiro,
assistência médica, se o estabelecimento do Obacamare em 2010 amenizou
parcialmente a questão, a cruel revogação pela Suprema Corte dos EUA, em
2022, do direito federal ao aborto, que fora estabelecido em 1973 pela
decisão Roe versus Wade, deflagrou uma crise de saúde pública feminina
combatida como uma das prioridades centrais da campanha de Harris.
Quanto “a economia, estúpido”, o impacto do pico inflacionário em
consequência da pandemia de Covid, no primeiro período da administração
Biden, parece ter sobrepujado para o eleitorado a robusta recuperação
econômica conquistada na metade final do mandato.
Por fim, “mudança versus mais do
mesmo” foi outra pedra no sapato da qual a Vice-Presidente, talvez por
excessiva fidelidade, não soube se desvencilhar. E Carville, sabemos,
não foi o primeiro a frisar a força da bandeira eleitoral de “mudança”,
sobretudo em tempos instáveis.
Exibido uma semana antes do pleito
pelo IMS-SP, o ensaio de arquivo “Propaganda Política: 1952-2024”,
atualizado a cada disputa desde 1984 por Antoni Muntandas e Marshall
Reese, comprova seu forte apelo nos comerciais televisivos dos
candidatos presidenciais dos EUA. Já no primeiro clipe, há 72 anos,
ei-lo em “Eisenhower Responde à América”. “É tempo para uma mudança”,
afirma para a câmera o candidato republicano que bateu Adlai Stevenson e
encerrou um ciclo de duas décadas de administrações federais
democratas.
Richard Nixon, em 1968, Jimmy
Carter, em 1976, Ronald Reagan, em 1980, Bill Clinton, em 1992, e Barack
Obama, em 2008, aplicaram com sucesso a fórmula. Em 2016, com surpresa,
e agora, desgraçadamente, Donald J. Trump somou-se à lista. Apertem os
cintos.