Por Amir Labaki
A mais
polêmica das listas de filmes a circular neste final de 2025 saiu um
pouco mais cedo, há um mês, na Variety. Não se trata de qualquer das
tradicionais relações de melhores do ano. São as cem maiores comédias da
história do cinema, segundo escolha de colaboradores da revista
americana especializada em entretenimento.
“Ao compilarmos nossa lista das
maiores comédias de todos os tempos, refletimos bastante sobre o que
define um clássico”, diz o texto de apresentação. “Mas, acima de tudo,
seguimos o chamado do nosso bom humor”.
A provocação começa no topo. O
ápice da comédia em filme seria “Corra Que a Polícia Vem Aí” (The Naked
Gun: From The Files of Police Squad!, 1988), o primeiro título da
trilogia de paródias de séries policiais do trio Jerry Zucker, Jim
Abraham e David Zucker estrelada por Leslie Nielsen (1926-2010),
retomando a parceria de imenso sucesso de outra sátira, “Apertem os
Cintos, O Piloto Sumiu” (Airplane!, 1980), esta aos thrillers em aviões.
(Neste ano, “The Naked Gun” ganhou nova sequência, com Akiva Schaffer
na direção e Liam Neeson no papel originalmente de Nielsen, para
razoável resultado de bilheteria).
“O triunfo de ‘Corra que a Polícia
Vem Aí!’ reside em ser uma comédia descaradamente desinibida, anárquica
e observacional, que satiriza tudo: autocratas globais, diálogos
enfadonhos de filmes noir, sexo seguro, um jogo de beisebol
profissional, comida esquecida na geladeira por muito tempo”, justifica a
Variety sua escolha. “O filme inteiro é encenado com uma alegria
desenfreada, um senso de exagero tão inteligente que chega a ser
diabólico”.
Não se descarte a leitura de que
este coroamento reflita um contraste nostálgico com a retomada pela
versão deste ano. Ainda assim, uma homenagem desta magnitude ao humor de
Zucker, Abraham & Zucker ficaria muito melhor se elegendo o ápice
da colaboração do trio no ainda hilário “Airplane!”, lembrado apenas no
61º posto da lista.
É o problema mais chamativo dos
100 mais da Variety, mas longe do único. Numa eleição das maiores
comédias da história, espanta o anglofonismo de destacar 97 produções
americanas ou britânicas e apenas três do resto do mundo: “Playtime”
(1967), de Jacques Tati, na 14ª posição, “Loiro Alto de Sapato Preto”
(1972), com Yves Robert dirigindo Pierre Richard (o homenageado neste
ano pelo Festival de Cinema Francês no Brasil), na 52ª, e “Mulheres À
Beira um Ataque de Nervos” (1988) de Pedro Almodóvar, na 84ª.
O terceiro fator de celeuma é
temporal: quase um quarto das comédias destacadas foi produzida nos anos
2000. Pode-se sempre louvar a busca de maior contemporaneidade,
aproximando as escolhas da sensibilidade do público deste século, mas
será mesmo que vivemos recentemente uma era de ouro do humor nas telas? A
dúvida aumenta quando encontramos na lista, no 20º posto, “Zoolander”
(2001), de e com Ben Stiller, “O Âncora: A Lenda de Ron Burgundy”,
estrelado por Will Ferrell, no 87º, e, fechando os escolhidos, “O Diário
de Bridget Jones” (2001), com Renée Zellweger.
Uma comparação iluminadora é a das maiores comédias de todos os tempos da Variety (www.variety.com)
com as cem mais do cinema americano da votação do American Film
Institute (AFI), “AFI’s 100 Years... 100 Laughs” (100 Anos... 100
Risadas), revelada em 2000 dentro de uma série de listas que celebraram o
centenário de cinema (www.afi.com).
Para começar, “Corra Que A Polícia Vem Ai!” nem aparece, com “Apertem Os
Cintos, O Piloto Sumiu” ocupando um honroso décimo lugar. O topo da
lista da AFI distingue “Quanto Mais Quente Melhor” (Some Like It Hot,
1959), de Billy Wilder, o segundo colocado da Variety.
Nos dez mais, apenas mais um
título se repete: “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (Annie Hall, 1997),
de e com Woody Allen. No mais, apenas um terço dos títulos lembrados
coincidem nas centenas dos dois levantamentos.
Para não parecer implicância,
destaco três comédias incontornáveis que estão numa lista e não na
outra. Na da Variety, eis “Monty Python e O Cálice Sagrado” (1975, em
sexto), de Terry Gilliam e Terry Jones; o camp “Pink Flamingos” (1972,
31º), de John Waters com Divine; e o clássico “Pandemônio”
(Hellzapoppin’, 1941, em 67º), de H. C. Potter. Por sua vez, na do AFI,
estão “Primavera da Hitler” (The Producers, 1967, 11º), de Mel Brooks,
“Tempos Modernos” (1933, 33º), de Charles Chaplin, e “Ninotchka” (1939,
52º), com Greta Garbo provando-se mais versátil do que se acreditava sob
a direção de Ernst Lubitsch.
Mas, se ainda há dúvidas,
acredite: não é que a lista da Variety esnobou “Cantando na Chuva”
(1952), de Stanley Donen e Gene Kelly? A relação do AFI não cometeu
semelhante heresia, colocando-o no 16º posto.
Há alguns anos imitei a tradição
de um amigo e me esbaldei revendo-o, pela enésima vez, como celebração
de virada de ano -em tela grande, numa sala de cinema, comme il faut.
Ainda que na TV doméstica, repasso a dica. Nada melhor para lavar a alma
do que assistir Donald O’Connor levantando a bandeira com “Make ‘em
Laugh” (faça-os rir). Para a melancolia desse período de festas,
desconheço melhor antídoto.