Por Amir Labaki
Boxe é o mais cruel dos esportes.
Seu fascínio algo macabro parece evanescer neste século, após o ápice
nos cem anos anteriores. O cinema não pode reclamar inocência. Nem
falemos dos cinejornais ou de filmes da Hollywood clássica.
Eis, nas últimas décadas, entre as
ficções, quanto à popularidade, a hexalogia “Rocky”, estrelada por
Sylvester Stallone entre 1976 e 2006, e seu spinoff na até aqui trilogia
“Creed” (2015-2023), com Michael B. Jordan, e, quanto à excelência,
nada menos que “Touro Indomável” (1980), forte concorrente ao topo da
obra de Martin Scorsese, ambíguo que seja quanto à heroicização do
pugilista, no caso Jake LaMotta (Robert DeNiro no ápice).
Entre os documentários, todo um
livro poderia concentrar-se aos dedicados a Muhammad Ali (1946-2016).
Quando de sua morte, ousei um sobrevoo aqui mesmo nesta coluna
(disponível online). Quase uma década se passou, e a lista não parou de
crescer, incluindo uma série biográfica, em quatro episódios,
capitaneada pelo grande Ken Burns (PBS, 2021, disponível em DVD e
Blu-ray nos EUA, inédita por aqui). Nenhum me parece mais hipnótico do
que “Quando Éramos Reis” (1996), de Leon Gast, vencedor do Oscar, uma
radiografia da luta hiper midiática entre Ali e George Foreman pelo
título mundial, em 1974, no então Zaire, atual República Democrática do
Congo.
Respeitadas as distintas
características e reservadas as devidas proporções, entre os personagens
e seus impactos (inclusive políticos), entre suas carreiras e seus
talentos como boxeadores, entre o escopo das produções audiovisuais com
eles ao centro, Muhammad Ali e José Adilson “Maguila” Rodrigues dos
Santos (1958-2024) se aproximam na série documental "Maguila - Prefiro
Ficar Louco a Morrer de Fome", dirigido por Rafael Pirrho para a
Globoplay. A estreia de seus quatro episódios marca um ano desde a
despedida do maior pugilista peso-pesado da história do esporte no país.
Partilhavam eles a paixão pelo
ringue, a obsessão pela vitória, o boxe como estrada única entre a
pobreza e o conforto, e o carisma que lhes facultou uma fama para além
do universo esportivo como fenômenos pop (Ali, universal, Maguila,
nacional). Não haveria espaço para me deter aqui em cada item, bem
cobertos pela produção.
Quatro pontos de contato me
parecem mais tocantes. Primeiro, e determinante dos três outros: de
família pobre de Aracaju, migrante para São Paulo ainda adolescente,
Maguila descobriu em Muhammad Ali um ídolo para a vida, ao assistir pela
televisão seus combates no início dos anos 1970 (em 1971, bem lembra o
episódio inicial, Ali até passou por São Paulo para uma luta de exibição
no Ibirapuera).
Sustentando-se como ajudante de
pedreiro, Maguila foi descoberto entre treinos improvisados pelo grande
Ralph Zumbano, treinador e dono de academia de boxe, ele mesmo
ex-campeão sul-americano (peso-leve) e tio do maior boxeador brasileiro,
Éder Jofre (1936-2022), três vezes campeão mundial (peso-galo e
peso-pena). Se Zumbano desenvolveu o boxeador, a profissionalização,
ascensão e popularidade tiveram por maior marco o gerenciamento de sua
carreira, entre 1983 e 1989, pela parceria entre o locutor Luciano do
Valle (1947-2014) e o empresário José Francisco “Quico” Leal (um dos
entrevistados centrais da série).
O segundo e talvez principal
treinador de Maguila foi o ex-campeão mundial (médio-ligeiro) Miguel de
Oliveira, que o disciplinou e elevou ao auge da forma após assumir os
trabalhos na ressaca de duas derrotas traumáticas por nocautes em 1985,
para o argentino Walter Daniel Falconi e o holandês Andre Van Den
Oetelar, devidamente batidos em revanches no ano seguinte. Cresceria
então o sonho de uma carreira internacional mais sólida -e de uma luta
com o último grande fenômeno dos ringues, Mike Tyson.
Para o grande salto com vistas à
conquista do mundo, isto é, à inserção no hegemônico mercado esportivo
dos EUA, cerrou-se o segundo elo com Ali, num fatídico passo em falso: a
contratação de seu treinador americano, Angelo Dundee. Sob o pretexto
de credenciá-lo para uma luta pelo título com Tyson, Maguila foi
escalado para enfrentar outro dos concorrentes, o futuro e único quatro
vezes campeão Evander Holyfield. Um dos consensos dos depoentes na
série, a começar pela segunda esposa de Maguila, Irani Pinheiro, é
creditar a um erro de orientação de Dundee o nocaute que, naquele
segundo assalto da luta em Las Vegas em julho de 1989, encerrou a utopia
de enfrentar Tyson.
Quase um ano mais tarde, numa
legítima concessão de Maguila à sua memória afetiva, já aposentadas
quaisquer perspectivas de maiores cinturões, como evitar uma luta com o
mesmo George Foreman que ressuscitara a carreira de Ali no Zaire, ainda
que uma década e meio mais velho e após um longo afastamento dos
ringues? “Nunca vi um soco mais pesado do que o deste homem”,
confessaria Maguila ao amigo David Cardoso (sim, o ator e diretor de
cinema) sobre o golpe que o nocauteou novamente no segundo assalto.
Por ainda dez anos, Maguila
insistiria em driblar a aposentadoria em lutas de grande público pelo
Brasil contra adversários sem sombra de seu currículo. O círculo de
espelhamentos com Ali não tardaria a concluir-se das mais trágica das
formas. Diante do cotidiano por décadas de pancadas no crânio, em
treinos e combates, Muhammad Ali desenvolveria a doença de Parkinson;
Maguila, assim como Éder Jofre, seria diagnosticado com encefalopatia
traumática crônica (ETC), como apenas neste século foi definida esta
doença neurodegenerativa progressiva.
A serena e clara explicação da ETC
pelo neurologista brasileiro Renato Arghinah, responsável pelos
tratamentos de Éder e de Maguila, e os depoimentos de Irani, do filho do
casal, Júnior Ahzura, e do amigo (e coprodutor da série) Josmar Bueno
Junior, no quarto e último episódio, dedicado à fragilização e morte do
pugilista, consolidam “Maguila: Prefiro Ficar Louco a Morrer de Fome"
para além do nicho audiovisual esportivo. Maguila, como o herói Ali,
pode não ter sido maior do que a vida, mas seguem ambos, cada qual em
sua dimensão, maiores do que a morte. A um só tempo, por causa e apesar
do esporte mais cruel.