Por Amir Labaki
“A morte de
Rossellini deixa o cinema órfão”, escreveu Glauber Rocha em 1977 em sua
elegia ao mestre italiano. “Nenhum cineasta influenciou tanto os
autores cinematográficos das três últimas gerações”, prosseguia, citando
a seguir, entre outros, Antonioni e Bertolucci, Jean-Luc Godard e Jean
Rouch, e poderia ter falado dele mesmo e de Nelson Pereira dos Santos,
por aqui.
“Ele foi o antiprofissional do
cinema”, cravava Glauber. É de certo modo a tese central, sem citá-lo,
de “Roberto Rossellini, Mais Que Uma Vida”, o documentário de Ilaria De
Laurentiis, Raffaele Brunetti e Andrea Paolo Massara que é um destaque
da 20ª edição do Festival de Cinema Italiano em cartaz pelo país até o
próximo dia 29, com parte de sua programação, de títulos inéditos e
clássicos, disponível em streaming gratuito pelo Belas Artes A La Carte.
“Não quero mais fazer filmes. O
cinema, do jeito que está hoje, não me interessa mais”, afirma o diretor
italiano logo na abertura, a partir do texto de uma carta, de dezembro
de 1956, lida pelo ator e cineasta Sergio Castellitto que lhe empresta a
voz no documentário, afora os generosos trechos de entrevistas. “Mais
Que Uma Vida” se estrutura a partir exclusivamente de materiais de
arquivo, depoimentos e escritos de Rossellini e de colaboradores, como o
diretor de fotografia Aldo Tonti e o assistente francês Jean Herman,
entrevistas com sua filha Isabella Rossellini e o diretor (e seu
montador quando jovem) Tinto Brass, entre outros.
O foco concentra-se nas duas
últimas décadas da vida e obra do realizador, quando progressivamente se
afasta da produção cinematográfica para se fixar em filmes para a
televisão, de pegada “didática” como por ele mesmo definido. O ponto de
virada é sua viagem à Índia em 1958 para realizar uma série televisiva
sobre o país enfim independente do poder colonial britânico. Apenas
referências pontuais são feitas à primeira grande fase de sua carreira,
na liderança da escola neorrealista, com clássicos como “Roma Cidade
Aberta” (1945) e “Paisá” (1946), este último parte da programação também
online do festival.
O segundo e mais breve período, de
parceria em dramas existenciais (Stromboli, 1950; Viagem à Itália,
1954) com sua nova musa, Ingrid Bergman, em seu interregno da carreira
hollywoodiana, também é mais citado já em seu período de crise agônica,
marcado por dificuldades financeiras e restrições de oportunidades.
Bancado por ninguém menos que o primeiro-ministro Jawaharlal Nehru, o
projeto indiano é abraçado como a chance de ruptura e reinvenção.
“Não quero visitar nenhum
monumento indiano” e suas “verdades embalsamadas”, sustentou Rossellini.
“É a realidade que me interessa”, frisou, repetindo o lema de toda sua
produção. Combinando registros documentais e reencenações com
protagonistas anônimos, três dos quatro dos episódios principais giram
em torno do relacionamento entre indianos e animais (um tigre, um
elefante, um macaco). É uma espécie de retorno “a seus primeiros
documentários”, lembraria anos depois o crítico espanhol José Luis
Garner.
Durante a produção, Rossellini
encontra nova musa, Sonali DasGupta, esposa de um célebre
documentarista. Apesar da inexperiência cinematográfica, a elege como
co-roteirista. “Seus amores e seu cinema são a mesma coisa”, analisa seu
jovem assistente francês, Jean Herman.
O sucesso no Festival de Cannes de
1959 da versão editada para cinema da série, “India: Matri Bhumi”
(Índia: Mãe Terra), recolocou brevemente Rossellini no mercado do cinema
ficcional com que almejava romper. Em quatro meses, por determinação
dos produtores, rodava e finalizava “De Crápula A Herói”, um drama
cínico sobre a humilhação cotidiana pelos aliados nazistas da Itália
fascista, tendo por protagonista um soberbo Vittorio De Sica. Arrebatou
nada menos que o Leão de Ouro do Festival de Veneza do mesmo ano,
empatado com “A Grande Guerra”, de Mario Monicelli. “Talvez aceitar
fazê-lo tenha sido um erro tático meu”, sustentaria Rossellini. “Sei
como fazer um filme de sucesso, só não quero fazer isso. Quero fazer um
filme de pesquisa, o que é outra coisa”.
Sua retomada do “filme de
argumento”, com quatro novos títulos, logo se esgotaria após o início
dos anos 1960. A partir do telefilme “O Absolutismo: A Ascensão de Luis
XIV” (1966), Rossellini concentrou-se até a morte a seu projeto de
realizar produções audiovisuais ancoradas no didatismo, ou como mais
tarde preferiria, na “informação”. Seu projeto, como adiantara já em
1954 aos Cahiers du Cinéma, não buscava fazer arte, “mas tornar-me
útil”.
“Rossellini realiza a mais
fantástica aventura de um cineasta”, defendeu Glauber. “Refilma (crítica
e poeticamente) a ‘História da Humanidade’, Cristo, Sócrates,
Descartes, Santo Agostinho, Cosimo de Médici, Garibaldi, Pascal, Luis
XIV, a luta do homem pela sobrevivência, a humanidade produzida pela
indústria do ferro, a gênese biofísica”. Parte desta produção
recentemente esteve acessível por aqui em DVDs, sobretudo pela
Versátil.
“Roberto Rossellini: Mais Que Uma
Vida” recorda como, fechando o círculo com rara coerência, seu último
ato público foi presidir o júri do Festival de Cannes que em 1977
atribuiu a Palma de Ouro a “Pai Patrão” dos irmãos Paolo e Vittorio
Taviani, originalmente um telefilme sem estrelas. Infelizmente o
documentário não registra que, também sob sua presidência, distinguiu-se
“Di Cavalcanti” (posteriormente mais conhecido como “Di/Glauber” e por
décadas proibido de circular pela família do pintor), com o Prêmio
Especial do Júri para curtas-metragens.
Fora Di que, em Salvador,
apresentara o então jovem repórter ao “Maestro di Roma”. Era 1958,
Rossellini voltava da Índia e planejara uma série semelhante no Brasil,
nunca realizada. Mas este já seria mesmo outro filme.