Por Amir Labaki
Por
mais de 20 anos Laura Poitras tentou convencer Seymour M. Hersh a
colaborar num retrato dele em documentário. Compreende-se. Hersh, 88, é
forte candidato a mais importante repórter investigativo americano em
atividade. Poitras entende do ofício, tendo vencido o Oscar de melhor
documentário de longa-metragem de 2014 com o perfil do whistleblower
Edward Snowden em “Citizenfour” (exibido pela primeira vez no Brasil no É
Tudo Verdade).
Valeu a
persistência. O resultado chega agora às telas em “Cover-Up” (co-direção
de Mark Obenhaus), lançado no mês passado na 82ª. Mostra Internacional
da Arte Cinematográfica da Bienal de Veneza e em exibição nesta semana
na 49ª. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. No próximo ano
estará disponível em streaming pela Netflix.
No
entretempo, Hersh publicou suas memórias em “Repórter” (Todavia, 2019,
384 págs, R$ 110,00), refazendo sua própria trajetória como um dos mais
premiados jornalistas do pós-guerra nos EUA. No topo da estante, o
Pulitzer que recebeu em 1970 pela revelação do massacre de civis
vietnamitas, entre os quais mulheres e crianças, por soldados americanos
em My Lai, no então Vietnã do Sul.
Com
sua participação direta ou indireta, vários de seus mais impactantes
“furos” de reportagem inspiraram documentários. “Os Julgamentos de Henry
Kissinger” (2002), de Eugene Jarecki, foi adaptado de um livro de
Christopher Hitchens muito devedor do pioneiro trabalho de Hersh.
São
inegáveis ainda os pontos de contato entre o jornalismo dele e algumas
das principais obras de Errol Morris. “Sob a Névoa da Guerra” (2003) e
“The Unknown Known” (2013), retratam respectivamente os ex-secretários
de Defesa Robert McNamara ((JFK e LBJ) e Donald Rumsfeld (Bush Jr.).
“Procedimento Operacional Padrão” (2008) discute violações a direitos
humanos na prisão iraquiana de Abu Ghraib. A série “Wormwood” (2017),
por sua vez, trabalha em registro híbrido experimentos secretos da CIA
com drogas alucinógenas nos anos 1950.
Seymour
Hersh compensou a espera de Poitras abrindo-lhe suas inéditas anotações
de trabalho. “Cover-Up” é assim tanto uma reconstituição de sua vida,
com mais de seis décadas dedicadas a reportagens, quanto uma radiografia
de seu método jornalístico. Ao centro deste, o acesso a graduadas
fontes no establishment dos EUA, principalmente entre militares e
membros (ou ex) da comunidade de informações, sob garantia de anonimato.
Sua
carreira jornalística começou com a revelação em 1967 de um acidente
perto da base militar de Dugway, no estado do Utah, onde secretamente se
desenvolviam armas químicas e biológicas. Um emprego em seguida na
editoria de polícia num jornal de Chicago confirmou-lhe a vocação. “Me
apaixonei por ser repórter”.
Dois
anos mais tarde, cobrindo como freelancer a Guerra do Vietnã, Hersh
denunciava o morticínio em My Lai, por meio de uma matéria distribuída
para grandes jornais por uma pequena agência de notícias (Dispatch News
Service). A cobertura premiada com um Pulitzer seria seguida
regularmente, por meio século, de “furos” de imensa repercussão para
desconforto dos poderosos da hora nos EUA.
Para
o The New York Times, entre 1972 e 1979, ficando em poucos exemplos,
Hersh reforçou a cobertura do escândalo de Watergate, liderada por Bob
Woodward e Carl Bernstein do Washington Post; revelou a participação
direta da CIA, coordenada pelo então secretário de Estado Henry
Kissinger, no golpe militar no Chile que derrubou Salvador Allende em
1973; e escancarou outras operações vis da agência de inteligência
(algumas elencadas num relatório interno que se tornou célebre como
“Joias da Família”), catalisando históricas investigações oficiais de
suas atividades, a mais famosa delas pelo Comitê (Frank) Church do
Senado, de 1975.
Sua saída do
diário novaiorquino estaria vinculada à mudança de foco jornalístico,
em parceria com Jeff Gerth (um dos entrevistados do filme), dos vícios
públicos para os privados, a partir de uma série sobre o conglomerado
Gulf and Western. “Sem festa de despedida”, foi uma ruptura sem volta.
“Vi
os limites do jornalismo diário”, sustenta Hersh em “Cover-Up”. “Há um
limite. Você não pode fazer muito quando se está publicando no dia
seguinte”. Seu foco se voltou para reportagens em livro, como o que
dedicara ainda em 1972, sob o título emprestado por Poitras, para a
tentativa oficial de varrer para debaixo do tapete a responsabilidade
pelo massacre de My Lai.
Seguiram-se,
entre outros, “The Price of Power” (O Preço do Poder, 1983), uma
autópsia das vilanias de Kissinger na Casa Branca de Nixon; “The Samson
Option” (A Opção Sansão, 1991), a respeito do programa nuclear
israelense; e “O Lado Negro de Camelot” (L&PM, 1997), “sobre um
homem (JFK – AL) cujas fraquezas pessoais”, com ênfase nas aventuras
sexuais, “limitaram sua capacidade de cumprir seus deveres como
presidente”.
“Todos os livros
que publiquei deixaram pessoas furiosas”, comenta Hersh no filme.
“Especialmente o sobre John Fitzgerald Kennedy”. Resenhando-o para a New
Yorker, Gore Vidal refutou alguns dos principais ataques ao volume, não
viu maiores revelações, e defendeu Hersh como “um investigador à moda
antiga”.
Para o autor de
“Lincoln”, a mais importante contribuição do livro é trazer à luz “a
perigosa inadequação da imprensa americana”, diante do tanto sabido, mas
não publicado ou transmitido, no calor da hora sobre JFK. Curiosamente,
uma década e meia antes, Paulo Francis cantara a bola primeiro quanto a
“The Price of Power”. “O livro devasta mais a imprensa”, escreveu na
Folha. “Hersh diz o que os jornais, revistas e TVs diziam de Kissinger e
o que ele estava fazendo em verdade”.
Em
paralelo ao trabalho em livros, entre 1993 e 2011 Hersh encontrou um
novo porto para seus despachos em The New Yorker, centrados sobretudo no
Oriente Médio, notadamente a “guerra ao terror” em seu macabro e
caótico capítulo no Iraque (Abu Ghraib foi um de seus “furos”) e o
programa nuclear iraniano. À crescente controvérsia em torno de seu
recurso a fontes anônimas, o editor David Remnick saiu em sua defesa em
2003 declarando: “Conheço cada fonte que está em seus artigos”.
A
colaboração, contudo, se encerrou no início da década passada. Em 2013,
a revista não encapou uma reportagem atribuindo um ataque com armas
químicas aos rebeldes sírios, e não como amplamente difundido ao ditador
Bachar al-Assad. Por um tempo, o jornalista encontrou guarida em
publicações internacionais como o London Review of Books e Die Welt,
nunca livre de polêmicas.
Hersh
se voltou então para a autopublicação no blog Substack. “Sou um
outsider”, autodefiniu-se. Um dos mais veementes ataques recentes
concentrou-se no uso de uma fonte anônima única para uma reportagem de
2023 em que atribuía aos EUA a sabotagem do gasotudo Nord Stream que
leva gás da Rússia à Alemanha. Hersh continuou bancado sua versão.
“O
dia em que não perseguir uma história é o dia em que estou morto”,
afirma Seymour M. Hersh, pesquisando no filme sobre o morticínio de
civis em Gaza por tropas israelenses de Benjamin Netanyahu.
Idiossincrático, solitário, controverso, o repórter em “Cover-Up”
reafirma-se vivíssimo.