Por Amir Labaki
É
tudo Welles. No marco dos 40 anos da morte do diretor de “Cidadão Kane”
(1941), completados na última sexta (10), a Cinemateca Francesa
apresenta talvez o mais abrangente programa recente dedicado a Orson
Welles (1915-1985). Intitulado “My Name is Orson Welles” (meu nome é
Orson Welles), em inglês como que numa respeitosa concessão da
francofonia, celebram-no um ciclo de filmes e de encontros (até 29 de
novembro) e uma exposição de fotos, croquis, roteiros e diversa
cinemabilia (até 11 de janeiro).
Já
nesta semana inicial, a retrospectiva abordou sua desventura brasileira,
“It’s All True” (É Tudo Verdade, 1942, inacabado), iniciada dentro do
empenho de guerra pela mobilização pan-americana contra o Eixo. A maior
especialista no projeto, Catherine L. Benamou, que participou (à
distância) neste ano da Conferência Internacional do Documentário do 30º
É Tudo Verdade, apresentou (também pela internet), no último dia 13, a
sessão de “It’s All True – Baseado Num Filme Inacabado de Orson Welles”
(1993), de Bill Krohn, Myron Meisel e Richard Wilson.
O
próprio diretor-geral da Cinemateca Francesa, o crítico Frédéric
Bonnaud, assina a curadoria, assistido por Hannah Froidevaux e tendo por
conselheiros técnicos o historiador catalão Esteve Riambau e o crítico
gaulês François Thomas, especialistas wellesianos. “Expor Welles”,
escreve Bonnaud na apresentação à grande mostra, “é mostrar, com
evidências, que ele já havia feito muito antes de ‘Cidadão Kane’, e que
não, seu trabalho não parou por aí, mesmo que, por uma vez, seja o filme
que acabe atrapalhando o nome, e não o contrário”.
“Cidadão
Kane” permanece no centro de tudo e ocupa a maior parte da exposição,
que pretende ser a mais abrangente e a menos inexata dentro do
possível”, prossegue o curador. “Peça central do quebra-cabeça de
Welles, fortaleza no labirinto que constitui uma filmografia de
miudezas, quase elusiva devido às suas variadas versões, fragmentos e
obras inacabadas, ‘Kane” se impõe como uma obra de arte perfeita,
nascida sob os auspícios mais auspiciosos, mas que também contém seu
lado amaldiçoado: um autorretrato depreciativo de um visionário
tirânico, uma profecia maligna e autorrealizável, realizada com tal
alinhamento dos astros, tão ideal, que jamais poderá ser repetida. E, de
fato...”.
À sombra do monumento
“Kane”, ocultou-se o imenso Welles. Antes, o “enfant terrible” do teatro
novaiorquino (o “Macbeth” todo com elenco afro-americano) e o
popularíssimo criador de rádio (A Guerra do Mundos), até o contrato com
plenos poderes em Hollywood para a estreia tão arrebatadora quanto
combatida.
Depois, o mutilado
“Soberba” (1942); o segundo trauma com “É Tudo Verdade”; o polemista
rooseveltiano em rádio e jornais (1942-1948) paralelamente às tentativas
de relançamento ainda nos EUA (“O Estranho”, 1946, “A Dama de
Shanghai”, 1947, “Macbeth”, 1948); o longo autoexílio europeu
(1948-1956, 1959-1970), financiando quase sempre do bolso, em cavações
em televisão e sobretudo por trabalhos como ator (de picos como “O
Terceiro Homem”, 1949, a vales como “David e Golias”, 1960), novas obras
como diretor sempre personalíssimas, concluídas (Otelo, 1951, “O
Processo”, 1962, “Falstaff, O Toque da Meia-Noite”, 1965), ou não (“Don
Quixote”, fins dos anos 1950 e 60. “The Deep”, 1967/70).
Na
isolada reincursão hollywoodiana que vingou numa pausa de suas andanças
pelo Velho Continente, a mutilação de “A Marca da Maldade” (1958), por
mais uma montagem retirada de seu controle, reafirmou injustamente a
persistência na indústria fílmica americana do estigma de incontrolável.
Na última década e meia de vida, Welles emplacou uma derradeira
obra-prima, o documentário “Verdades e Mentiras” (1975), com o apenas
postumamente editado “O Outro Lado do Vento” (1975/2018) atestando a
melancolia da tentativa frustrada de reconexão com Hollywood.
Cineasta
barroco de arabescos dramáticos em torno de investigações e
desconstruções de identidade, ator condenado pelo porte e voz imperiais a
papéis maiores que a vida, Orson Welles cumpriu por meio século sua
sina de gênio encantado por uma arte cujo alto preço jamais lhe
retribuiu em acolhimento. “My Name Is Orson Welles” radiografa seu
exigente percurso, “cidadão de nenhum território fixo, exceto o da
arte”, como cravou Kenneth Tynan, numa exposição em cinco seções e mais
de 400 itens, desenhos próprios, documentos escritos, fotografias e
trechos de filmes, e uma ampla retrospectiva de seus filmes, das
filmagens episódicas, de suas criações ou participações televisivas, da
filmografia como ator, dos documentários em busca de decifrá-lo.
“Não
é fantasioso”, escreveu o mesmo Tynan, “ver a vida de Orson como um
romance picaresco inacabado, em que cada capítulo é uma aventura bizarra
presa como uma conta à linha da personalidade do herói; a
matéria-prima, na verdade, para um novo ‘Cidadão Kane’, diferente do
antigo porque a personagem central seria um fazedor de arte, e não um
mero colecionador”.
O perfil é de
1961, quase um quarto de século, dois dos melhores filmes (“Falstaff” e
“Verdades e Mentiras”), gavetas de roteiros não-filmados e incontáveis
reuniões improdutivas com executivos sem qualquer noção de cinema, antes
do adeus a Welles. Quatro décadas após sua precoce despedida, a
celebração francesa vem reafirmar a descrição de Tynan como nada menos
do que premonitória.