Por Amir Labaki
Nem mesmo a pandemia me tornou um
grande ouvinte de podcasts de cinema. Cheguei tarde, assim, a “The Plot
Thickens” (o enredo se complica, em tradução livre), produzido pelo
canal por assinatura americano especializado em cinema clássico, TCM
(Turner Classic Movies). É um podcast documental, este sucessor do
documentário radiofônico, apresentado pelo principal crítico da TCM, Ben
Mankiewicz, desconhecido no Brasil dada a (infelizmente) radical
diferença de programação entre a emissora nos EUA e aqui.
O sobrenome recomenda. Ben teve
por tio-avô, que conheceu pouco, um dos maiores cineastas da Hollywood
dos anos dourados: Joseph L. Mankiewicz (1909-1993), quatro vezes
premiado com o Oscar, duas das quais como diretor e roteirista de “A
Malvada” (1951). Trivia: pouco acessível nas últimas décadas de vida,
precocemente aposentado, tive o privilégio de assistir a umas das raras
entrevistas públicas de Joe, quando homenageado por uma retrospectiva da
Mostra Internacional de Cinema de Veneza em 1987. Articulado, tímido e
introspectivo, parecia mais um professor universitário do que um dos
grandes realizadores da Hollywood clássica.
Devo a uma nota em mídia social (o
ex-Twitter, atual X) a descoberta de “The Plot Thickens”, que iniciava
em julho passado sua sexta temporada, dedicada aos bastidores babélicos
da conturbada produção de “Cleópatra” (1963), o mais caro dos épicos
americanos dos anos 1950 e 60. Mais caro, mais caótico como produção,
mas não, como corre a lenda, o maior fracasso: foi a maior bilheteria do
ano nos EUA e acabou dando lucro para a alquebrada 20th Century Fox,
que nele investira o recorde da época, US$ 44 milhões (algo como US$ 450
milhões atuais).
A série sobre “Cleópatra” sucedeu
temporadas enfocando, anualmente a partir de 2020, a carreira do diretor
e crítico Peter Bogdanovich (1939-2022); a desastrosa adaptação do
best-seller “A Fogueira das Vaidades” (The Bonfire of the Vanities, 1987
o livro, 1990, o filme), de Tom Wolfe, por Brian De Palma; a trajetória
de Lucille Ball (1911-1989) antes, durante e depois do megaestrelato
com a sitcom “I Love Lucy” (1951-1957); a vida e a carreira de uma das
primeiras estrelas negras, Pam Grier, a principal protagonista do que
ficou conhecido como “blaxplotation” em filmes como “Foxy Brown” (1974) e
Quentin Tarantino apresentou para novas gerações em “Jackie Brown”
(1997); e uma enciclopédica revisão de ninguém menos do que John Ford
(1894-1973), com um antológico episódio (o quarto,“The Search”, a busca)
pesquisando o destino de suas filmagens, jamais tornadas públicas como
filme completo, durante o Dia-D em 6 de junho de 1944, o desembarque das
tropas aliadas nas praias da Normandia, na França ocupada pelos
nazistas. (São em inglês, mas as transcrições completas ajudam os não
fluentes).
A história rocambolesca e em tudo
excessiva da realização de “Cleópatra”, onde se iniciou um dos mais
célebres romances do século 20, entre dois de seus protagonistas,
Elizabeth Taylor (1932-2011) e Richard Burton (1925-1984), sendo o
terceiro Rex Harrison (1908-1990), já foi deveras contada, sobretudo em
livros específicos e biografias dos protagonistas. O diferencial do
podcast é o acesso obtido por Ben aos quatro volumes dos diários
inéditos de Joseph L. Mankiewicz do período das filmagens.
Não era ele o diretor
originalmente escalado para o filme, e sim Rouben Mamoulian (1897-1987),
convidado pelo presidente do estúdio, Spyros Skouras, e não pelo
produtor que concebera o projeto, Walter Wanger. Com sólido currículo,
mas já semi-aposentado dos sets, Mamoulian chegou a rodar algumas cenas
em fins do segundo semestre de 1960, com a produção ainda concentrada
não em Roma ou no Egito, como o diretor almejara, mas nos estúdios
Pinewood em Londres, antes de se demitir, diante das dificuldades com a
produção, o descontentamento com o roteiro e os problemas, de saúde que
atrasavam o início dos trabalhos de Liz. Era ela a maior estrela da
época, à frente mesmo de Marilyn Monroe, e fora contratada pela soma
inédita de US$ 1 milhão, um terço do orçamento original de Wanger para a
produção.
Para alegria da atriz, a Fox
convidou Mankiewicz, que acabara de dirigi-la em “De Repente, No Último
Verão” (1959), pelo qual ela conquistara uma nova indicação ao Oscar. O
cineasta não tinha nenhuma experiência prévia com épicos, mas o estúdio
apostava no talento dele também como roteirista para arrumar o
problemático roteiro. Ele topou, jogou fora o texto que recebera e
escreveu um novo, inspirado sobretudo nas clássicas peças sobre os
personagens centrais (Cleópatra, Júlio César e Marco Antônio) de William
Shakespeare e Bernard Shaw. Seriam dois filmes de três horas, dedicados
separadamente às relações da rainha do Egito com cada um dos líderes
romanos. Ao fim, para sua decepção final, a Fox concentrou tudo num
único filme de quatro horas.
Num dos poucos comentários
públicos em vida sobre a experiência traumática de “Cleópatra”,
Mankiewicz metralhou que o filme fora “concebido em estado de
emergência, filmado em confusão e concluído em pânico cego”. Nada cito
dos diários para preservar-lhe o prazer das descobertas no podcast, mas
lá estão, por exemplo, a atuação como psicoterapeuta amador dos
protagonistas e a agonia física frente a necessidade de escrever de
noite e filmar de dia e as rodagens interrompidas e estendidas (afinal,
realizadas na Cinecittá, em Roma, por 272 dias, quando na origem do
projeto estavam previstas apenas 64 diárias).
Revisto hoje, “Cleópatra” é muito
melhor do que sua fama, com a densidade psicológica e o brilho dos
diálogos característicos de Mankiewicz e raríssimos nos épicos
hollywoodianos. Enquanto eram perseguidos pelos primeiros paparazzi fora
dos estúdios, com a ruptura de seus casamentos para iniciar o que seria
uma longa e conturbada história amorosa, Liz e Burton entregavam duas
das melhores atuações de suas carreiras -e Harrison, como Júlio César,
está como sempre impecável.
A saga dos desregrados bastidores,
contudo, eclipsou o filme. Dos vinte que Joseph L. Mankiewicz dirigiu,
conta sua filha Alex, é o único cujo pôster ele jamais pendurou em seu
retiro final. Escute e entenda.