Por Amir Labaki
Cineasta
da história, utópico e socialista, Silvio Tendler legou-nos ao morrer
no último dia 5 uma das obras essenciais do cinema brasileiro do último
meio século. Somando mais de setenta títulos, entre longas-metragens,
médias, curtas e séries, seus filmes foram fundamentais para a afirmação
e renovação do documentário brasileiro e para a compreensão da história
nacional em torno do trágico evento mais marcante para sua geração: o
golpe civil-militar de 1964 e a ditadura que se instalou por 21 anos.
Tendler
descobriu o amor ao cinema como frequentador e militante do circuito de
filmes de arte e cineclubes de seu Rio de Janeiro natal de meados dos
anos 1960. A opção pelo documentário não tardou, despertada por duas
experiências: a leitura de um opúsculo sobre a obra do documentarista
holandês Joris Ivens e uma sessão de “A Sexta Parte do Pentágono”
(1968), curta-metragem de Chris Marker e François Reichenbach sobre a
marcha de protesto até o Pentágono em 1967 contra a Guerra do Vietnã.
Os
dois primeiros curtas documentais que rodou, jamais editados e
infelizmente perdidos face a repressão ditatorial no Brasil e no Chile,
já apontavam a coerência da trajetória. O primeiro partia de uma
entrevista que Tendler realizou em 1968 com João Cândido (1880-1969), o
“almirante negro” que em 1910 liderou o levante de marinheiros que
passou para a história como a “Revolta da Chibata”. “La Cultura Popular
Vá!”, o segundo, retratava artistas anônimos da periferia no Chile de
1973 durante o governo do socialista Salvador Allende, onde Tendler
viveu na primeira parte de seu exílio.
No
segundo período, já em Paris, sua formação foi completada por estudos
em cinema e história e pelo convívio com seus dois mestres maiores:
Ivens e Marker. Ao cinema engajado e internacionalista do primeiro
dedicou seu mestrado. Com um coletivo liderado pelo segundo participou
da realização do documentário “La Spirale” (1975), uma visão panorâmica
do Chile desde a eleição de Allende em 1970 até o golpe militar de 1973.
É
importante contextualizar o Brasil ao qual Tendler voltou em 1976.
Vivia-se ainda em plena ditadura militar, no segundo ano do governo do
general Ernesto Geisel, com o projeto de uma abertura “lenta, segura e
gradual” ainda apenas esboçado e sob contestação pela linha dura. Apenas
em 1979 o despótico AI-5 seria revogado, o último general-presidente,
João Batista Figueiredo, empossado, e sancionada a lei de Anistia. No
campo cinematográfico, a chamada era Embrafilme estava em seu apogeu com
forte presença de filmes brasileiros nas bilheterias -mas documentários
de longa-metragem eram raridade nas salas de cinema.
Compreende-se,
assim, a ousadia política e cultural do projeto fílmico ao qual logo
dedicou-se Tendler. Entre o retorno e 1984, ele realizou dois
longas-metragens documentais de história política, estruturados a partir
de arquivos, narração em off e entrevistas inéditas, sobre duas das
principais lideranças democráticas cassadas e estigmatizadas pelo regime
militar ainda vigente: os ex-presidentes Juscelino Kubitscheck e João
Goulart.
Tendler
posteriormente classificaria esse díptico não planejado como “duas faces
da mesma moeda”. Em contraste com a ditadura, “Os Anos JK – Uma
Trajetória Política” (1980) lembrava não haver incompatibilidade entre
“democracia e desenvolvimento”, enquanto “Jango” (1984), por sua vez,
destacava a luta democrática por “justiça social”.
Inspirado
por um comentário de Joris Ivens sobre a “frieza” de “Os Anos JK”,
Tendler amadureceu em “Jango” um estilo com maior ritmo e mais emoção,
por meio da montagem e da trilha musical, aproximando o espectador.
Ambos os filmes, assim como outro realizado entre eles (O Mundo Mágico
dos Trapalhões, 1981), comprovaram a existência de um público para
produções não-ficcionais brasileiras, alcançando marcas históricas entre
500 mil e 1 milhão de espectadores em salas. Nenhum filme posterior de
Tendler, e apenas alguns documentários musicais, desde então se
aproximaram deste desempenho. Os motivos são vários, entre os quais o
impacto da revolução digital e a inexistência de uma política de
distribuição para documentários.
Aquela
extraordinária arrancada forneceu o mapa de navegação para a longa e
prolífica carreira documental de Tendler, com o passar do tempo algo
reajustada em forma para as novas e multiplicadas telas (canais por
assinatura, plataformas de streaming, internet), mas sempre fiel à
perspectiva do utópico socialista. O díptico sobre as lideranças
políticas da República Liberal de 1945-1964 tornou-se tetralogia com
longas sobre Tancredo Neves (2010) e Leonel Brizola (2024). A
resistência à ditadura pautou séries sobre a oposição e resistência de
advogados, estudantes e militares.
A
produção de Tendler pode ser dividida em dois vetores principais:
retratos e documentários de intervenção. No primeiro grupo, eis filmes
sobre cineastas como Glauber Rocha e Santiago Alvarez, poetas como
Castro Alves e Ferreira Gullar, intérpretes do Brasil como Josué de
Castro e Milton Santos. No segundo, documentários sobre o impacto social
do capitalismo globalizado (Privatizações, 2014, Dedo na Ferida, 2017),
e a denúncia dos agrotóxicos e defesa da agroecologia (O Veneno Está Na
Mesa I e II, 2011 e 2014).
Dois
filmes dialogam intensamente desafiando essas classificações: o
ensaístico “Utopia e Barbárie” (2009), um balanço geracional a partir de
grandes eventos mundiais desde a Segunda Guerra, e o autorretrato
reflexivo “Nas Asas da Pan Am” (2020). Assisti-los é a melhor introdução
à cabeça de Tendler, mas suas obras-primas são mesmo “Os Anos JK” e
“Jango”.
Em mais de três
décadas de encontros, lembro de Silvio Tendler sempre sorrindo, amante
da vida, e com um filme ou série a caminho. Repercutem em mim até hoje
aquelas sessões em tela grande de “Os Anos JK” e “Jango”, entre os
primeiros documentários brasileiros que assisti em sala -e não creio
falar sozinho entre cinéfilos de minha geração.
Acho
que era Jean Rouch que dizia que cineastas não morrem, pois continuam a
viver em seus filmes. É meio isso: eles prosseguem vivos nos filmes que
vivem em nós.