Por Amir Labaki
A amizade
em vida e a influência em suas artes entre o escritor Jorge Amado
(1912-2001), o artista plástico Carybé (1911-1997) e o cantor e
compositor Dorival Caymmi (1914-2008), o primeiro e o último baianos de
nascimento, o segundo, por opção, não eram estranhas ao cinema, cada
qual já retratado em documentários, com maior ou menor talento e
frequência. Registros são registros; filmes são o que se articula a
partir deles, tanto melhores quanto a originalidade de seu enfoque. Como
prenuncia o título, é o triunfo de “3 Obás de Xangô”, dirigido por
Sérgio Machado.
Amado, ou Obá Arolu; Carybé,
nascido Hector Júlio Paride Bernabó na Argentina, Obá Onâ Xokum; Caymmi,
Obá Onkikoyi - três dos doze ministros de Xangô do Axé Ôpo Afonjá do
candomblé de Salvador, Bahia. Estabelecido em 1936 por Mãe Aninha e
Martiniano do Bonfim, o conselho Obá foi criado visando uma ponte entre o
terreiro e a sociedade, “associando a dimensão puramente religiosa com a
dimensão cívico-política”, explica Gilberto Gil, que como Obá Oni Koyi
sucedeu Caymmi.
“3 Obás de Xangô” tem base sólida
na qual se erguer. Primeiro, depoimentos filmados e felizmente
preservados. “Na Bahia tem um substrato, um porão, assim, que é tudo
mágico, e justamente o mágico é o candomblé”, celebra Carybé. Jorge
Amado, por sua vez, lembra o combate contra o longo histórico
repressivo: “O inciso da Constituição brasileira, até hoje, que garantiu
a liberdade religiosa no Brasil, está na Constituição de 1946 e foi um
projeto meu” (como deputado federal constituinte pelo PCB).
Segundo: como frisa a antropóloga
Goli Guerreiro, o trio traduziu essa dimensão da afro-brasilidade em
linguagem das artes (livros, pinturas e esculturas, canções). Eis
“Jubiabá” de Jorge, as aquarelas de Carybé, “Oração de Mãe Menininha” de
Caymmi.
Eis, para além da produção deles, a
deslumbrante obra foto-documental de Pierre Verger (1902-1996). E
somam-se, para enriquecer o quadro, entrevistas exclusivas, filmagens de
arquivo e de reencenações ficcionais, com pesquisa de Antonio Venancio e
edição de André Finotti, também co-roteirista ao lado de Gabriel
Meyohas, Josélia Aguiar (biógrafa de Jorge Amado) e Sérgio Machado.
Uma tripla experiência talhou
Machado para o desafio, produzido por Diogo Dahl. Como documentarista,
fez sua estreia em “Onde A Terra Acaba” (filme de abertura do É Tudo
Verdade em 2001), um belo retrato do cineasta Mário Peixoto (1908-1992),
diretor do clássico “Limite” (1930). Na ficção, sotoropolitano de
nascimento e formação, debutou com um delicado triângulo amoroso com
Salvador como cenário/personagem, “Cidade Baixa” (2003). Tampouco o
planeta Jorge Amado lhe era estranho, como co-diretor ao lado de
Maurício Farias da minissérie “Pastores da Noite” (TV Globo, 2002) e
diretor para cinema de “Quincas Berro D’Água” (2010).
Multipremiado (Festival do Rio,
Grande Otelo, Mostra de São Paulo, Tiradentes), “3 Obás de Xangô” avança
com fluência entre apresentações biográficas, anedotas da convivência e
experiências com o candomblé, com um breve capítulo sobre o poder
feminino. Os pontos altos se originam em sequências de arquivo. Em
“Jorjamado no Cinema” (1979), de Glauber Rocha, o escritor adianta uma
possível epígrafe para este novo filme, asseverando: “Não há nada que
vale a amizade na vida”. Reunidos em rara ausência de Jorge em sua casa
do Rio Vermelho, para a rodagem em 1974 de um curta-metragem de Fernando
Sabino e David Neves, Caymmi e Carybé se divertem satirizando duas
novas manias do amigo.
Combinando o vetor da amizade ao
do candomblé, nada supera em frescor e impacto os registros feitos para o
documentário sobre Jorge Amado realizado por João Moreira Salles para a
TV francesa em 1995. Descortina-se o cotidiano: o escritor, Zélia
Gattai (sua mulher e escritora) e Carybé visitam as casas e o terreiro
de Mãe Stella de Oxóssi, do também Obá Camafeu de Oxóssi e Dona Toninha,
proseando com eles no avançar da manhã. Cinema direto, a sensação de
estar lá, como cravou o mestre Richard Leacock.
Neste tempo e mundo de polaridades agudas, o reencontro possível com a delicadeza perdida.