Por Amir Labaki
A
presença de “Como Era Meu Gostoso Meu Francês” (1972), de Nelson
Pereira dos Santos, na lista de 100 melhores filmes de década de 1970,
publicada no último dia 18 pelo site especializado americano IndieWire (www.indiewire.com),
mantém a marca de ao menos uma produção brasileira na votação iniciada
em 2022 para destacar títulos de uma década específica por vez, sendo
aquela inaugural concentrada na produção dos anos 1980.
Naquele
ano, dois filmes nacionais estavam eram os mais votados: “Cabra Marcado
Para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, na 53ª posição, e “A Idade da
Terra” (1980), de Glauber Rocha, no 99º posto. Em 2023, dedicada à
década de 1990, “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles, ficou no
88º; no ano passado, com foco nos anos 2000, eis na 68ª posição “Jogo
de Cena” (2007), de Eduardo Coutinho.
O
reconhecimento inclui no cânone das listas da IndieWire um dos grandes
mestres do cinema brasileiro a partir de uma de suas obras de vivo
interesse na presente discussão e valorização da produção
cinematográfica decolonial. “Uma sátira implacavelmente nativista da
arrogância colonial, a obra-prima do cinema novo de Nelson Pereira dos
Santos continua sendo uma das críticas mais contundentes da história do
cinema à narrativa do salvador branco que tanto propagou nos últimos 125
anos”, escreve David Ehrlich na apresentação do filme no ranking de
IndieWire.
Livremente
inspirado em “Duas Viagens ao Brasil” (1557), do alemão Hans Staden
(1524-1576), único cronista estrangeiro do Brasil colonial a sobreviver
após prisioneiro dos tupinambá, “Como Era Gostoso Meu Francês” muda-lhe a
nacionalidade, Hans tornando-se Jean. “Ele (Staden) experimentara uma
aventura individual”, explicou em entrevista Nelson Pereira dos Santos
na pioneira biografia publicada por Helena Salem em 1987 (Editora Nova
Fronteira). “Pareceu-me mais indicado, portanto, um personagem francês,
já que os franceses participaram diretamente da colonização e
constituíram um objeto mais interessante para a apreciação de um choque
de culturas”.
Capturado pelos
portugueses e destes pelos tupinambá, Jean (Arduíno Colasanti) tem seu
destino, ser antropofagicamente comido, traçado pelo cacique Cunhambebe
(Eduardo Imbassahy), ficando até vê-lo cumprido aos cuidados de Seboipep
(Ana Maria Magalhães), viúva do irmão do líder indígena. Todos os
intérpretes, principais, coadjuvantes e figurantes, são atores e extras
brasileiros, com os diálogos em tupi-guarani escritos pelo cineasta
Humberto Mauro.
Depois de
enfrentar problemas pontuais com a censura sob a justificativa da nudez,
“Como Era Gostoso Meu Francês” foi liberado com alguns cortes e
classificação livre, vencedor o prêmio de público do Festival de
Brasília e alcançando grande sucesso de bilheteria (800 mil
espectadores). No circuito internacional, participou da Quinzena dos
Realizadores do Festival de Cannes e da mostra competitiva do Festival
de Berlim, entre outros, estreando em salas de Nova York em 1973.
Um
ensaio original do curador e professor Richard Peña (New York Film
Festival/Columbia University e New York University), na antologia
clássica “Brazilian Cinema” (primeira edição, Associated University
Presses, 1982, nunca publicado por aqui), organizada por Randal Johnson e
Robert Stam, consagrou “Como Era Gostoso Meu Francês” na filmografia
essencial brasileira do período, num dos quatro títulos de Nelson
Pereira dos Santos (ao lado de “Vidas Secas”, “Fome de Amor” e “Tenda
dos Milagres”) entre os treze filmes nacionais analisados em escritos
específicos no volume. “As ligações entre os brasileiros de hoje e os
canibais indígenas podem ser vistos como uma das influências do
movimento tropicalista no filme”, relaciona Peña.
Por
sua vez, a eleição do drama musical autobiográfico “O Show Deve
Continuar – All That Jazz” (1979), de Bob Fosse, no topo da lista dos
melhores dos anos 1970, recupera uma obra-prima algo subvalorizada e com
indiscutível sintonia com o espírito daqueles tempos. Como escreve Ryan
Lattanzio, “nos momentos finais da década de 1970, Bob Fosse
recentralizou o cinema americano no pessoal e hipersubjetivo com ‘O Show
Deve Continuar’, encerrando uma década cujos filmes estavam
intensamente preocupados com a fragmentação da ordem social”.
Com
dois títulos entre os dez mais votados (O Poderoso Chefão I e II, em
quarto e quinto) e quatro na lista, Francis Ford Coppola impera entre os
diretores. No terceiro posto, três anos após liderar a lista de
melhores da história da revista britânica Sight and Sound, “Jeanne
Dielman” (1975), de Chantal Akerman, é o mais bem posicionado dos apenas
onze filmes dirigidos por mulheres.
Há
algo do impulso por revalorização do topo da lista na escolha de
“Verdades e Mentiras – F for Fake” (1973), a última obra-prima de Orson
Welles, na décima posição -entre os oito documentários - nem tanto,
reconheça-se. E, de “Amarcord”, de Fellini, a “Gritos e Sussurros”, de
Bergman, de “O Círculo Vermelho”, de Melville, a “Grey Gardens”, dos
Mayles, Hovede e Meyer, de “Laranja Mecânica”, de Kubrick, a “Esse
Obscuro Objeto do Desejo”, de Buñuel, é até bom não haver mais espaço
para lamentar as ausências.