Por Amir Labaki
Raríssima personalidade de crítico
de cinema, cineasta e gestor cultural, Gustavo Dahl (1938-2011)
adorava, como Kenneth Tynan, iniciar seus textos com primeiras linhas de
impacto, a mesma exigência distinguindo a sequência de sua escrita.
Precoce na publicação jornalística, com menos de 20 anos colaborador da
coluna cinematográfica do Suplemento Literário de “O Estado de S.
Paulo”, naqueles jovens tempos já acalantava para seus escritos uma
“vocação de livro”, concretizada apenas agora com organização de Tania
Leite e Alberto Flaksman.
“Cinema brasileiro: eu e ele –
Artigos, Cartas, Discursos, Ensaios, Entrevistas, Propostas” (Alameda
Editorial, 404 pags, RS 119) reúne 41 documentos de um universo de 250
inventariados da “produção intelectual de Dahl”, detalha a apresentação
de Leite. A variedade das reflexões e intervenções bem resume a
trajetória de seu pensamento tornado ação. Por mais de meio século, como
poucos Dahl pensou, escreveu, viu e fez filmes, e trabalhou diretamente
para o desenvolvimento de uma política de Estado em favor do cinema
brasileiro -e, se saímos do quase deserto, é porque, não sozinho, mas
muitas vezes à frente, venceu.
Para compreender-se a dimensão do
triunfo (relativíssimo, reconheça-se) batalhado por sua geração, “Cinema
brasileiro: eu e ele” representa volume essencial em qualquer
biblioteca. Se a seleção final não é de Dahl, dela participou numa
primeira etapa, ao lado de Manoel Rangel, seu sucessor como
diretor-presidente da Ancine, do qual foi mentor e primeiro titular
(2001-2007).
A vontade torna-se livro
incontornável para acompanhar a saga do grupo do cinema novo segundo a
própria palavra. A estante aos poucos se povoa, por iniciativas deles
mesmos ou de estudiosos. De Glauber Rocha, eis os próprios livros, a
seleção de cartas, até de poemas. Paulo César Saraceni, Cacá Diegues e
Zelito Viana publicaram memórias. De David Neves, não tardou uma
antologia póstuma de artigos e ensaios. Arnaldo Jabor e Ruy Guerra
compilaram crônicas e, montador na juventude de clássicos do movimento,
Eduardo Escorel discorreu sobre a experiência em alguns dos ensaios
reunidos num primeiro volume. Seleções de entrevistas, curiosa e
infelizmente, ainda são escassas, com exceções pontuais e esgotadas.
Nascido na Argentina, Gustavo Dahl
mudou-se com a família em 1947 para São Paulo, onde se formou. Ainda
estudante, em meados dos anos 1950, “a revelação do cinema” veio “pelo
olhar de Rubens Biáfora”, crítico de “O Estado de S. Paulo” (“uma visão
autóctone, autossuficiente, libertária, que inventava suas próprias
referências. De baixo para cima”) e cineasta bissexto (Ravina, 1958).
Paulo Emílio Sales Gomes
sucedeu-se como mentor cinematográfico, valendo a Dahl uma experiência
inicial em instituições na Cinemateca Brasileira, entre 1958 e 1960.
Nesta época, outro encontro fundamental: Glauber. A partir do segundo
semestre de 1960, por dois anos, como fizera Saraceni, Dahl cursou o
Centro Experimental de Cinema em Roma (“conservador”, “especializado em
neorrealismo’, “a gente era mais moderno”) e cruzava a Europa
acompanhando em festivais os primeiros filmes do nascente cinema novo.
Na sequência, em Paris, fez o
curso de documentário etnográfico de Jean Rouch, na aurora do “cinema
verité”. No início de 1964, retornava ao Brasil. No coração do cinema
novo, foi dos pioneiros a sacar-lhe uma das fragilidades: a ênfase na
produção, o histórico e estrutural gargalo da distribuição.
Com tanto amor pelo cinema e real
talento para a escrita, Dahl se aposentou cedo demais da crítica e
realizou apenas três longas-metragens, o drama político “O Bravo
Guerreiro” (1968), “Uirá, Um Índio À Procura de Deus” (1973) a partir de
Darcy Ribeiro, e o thriller político “Tensão no Rio” (1982), e alguns
curtas documentais (uma filmografia desfalca o volume). A partir de
meados dos anos 1970, seu foco se transferiu para a gestão das
instituições públicas empenhadas no desenvolvimento cinematográfico,
sobretudo em cargos de direção na Embrafilme (até 1979) e como criador e
diretor-presidente da Ancine.
A antologia organizada por Tania
Leite e Alberto Flaksman, que com ele trabalharam de perto, estrutura
seus escritos seguindo cronologicamente esta trajetória em três partes. A
voz da Dahl ilumina a conjuntura de seus escritos a partir de textos e
entrevistas de pegada pessoal, cartas e entrevistas nos dois primeiros
módulos, discursos públicos no terceiro. É um sensível comentarista de
filmes e um impressionante conceituador de políticas para o cinema e o
audiovisual.
“O Bravo Guerreiro”, seu filme de
estreia contemporâneo de “O Desafio, de Saraceni, e “Terra em Transe”,
de Glauber, na tríade sobre o impacto trágico do golpe de 1964 sobre a
intelectualidade de esquerda, tem por epígrafe uma citação de Nietzsche:
“Eu amo o que quer criar algo melhor que si mesmo e dessa arte
sucumbe”. A um só tempo me perturba e me enternece pensar se Gustavo
Dahl a recuperaria também na abertura de seu sonhado livro.