Por Amir Labaki
Pela simples leitura do cardápio
de títulos na Netflix, “Programa de Domingo: A História de Ed Sullivan”
(Sunday Best) de Sacha Jenkins poderia não despertar maior curiosidade,
em especial para quem pouco ou nada sabe de um dos apresentadores
essenciais da história da televisão nos EUA. Talvez algo ecoe nos
ouvidos dos admiradores de Elvis Presley e dos Beatles, que bateram
recordes de audiência na aurora da TV no programa, respectivamente em
1956 (60 milhões de espectadores) e 1964 (73 milhões).
O documentário de Jenkins rompe
com o habitual ao destacar uma fundamental dimensão política a um
fenômeno da história da mídia norte-americana: o papel essencial do The
Ed Sullivan Show, durante quase um quarto de século, para a inclusão no
mainstream televisivo de artistas negros dos EUA. Sim, Sullivan foi
essencial para Elvis e os Beatles, mas ainda mais -e a recíproca é ainda
maior- para James Brown e Mahalia Jackson, Tina Turner e Stevie Wonder,
Diana Ross e Michael Jackson, para ficar em poucos nomes.
Como sempre, é o ator, cantor e
ativista Harry Belafonte (1927-2023) que melhor sintetiza: “Uma coisa é
olhar para a transformação dos EUA através do prisma do que o doutor
Martin Luther King Jr. (1929-1968) trouxe para a mesa: a grande rebelião
negra, o Movimento por Direitos Civis. Mas aquele movimento jamais
teria sido capaz de se sustentar, com a intensidade que o fez, se não
houvesse forças sutis em ação. Aquela força sutil foi um momento como Ed
Sullivan”.
A conturbada estreia de Belafonte
no programa, num domingo de outubro de 1953, em pleno macartismo
correndo solto e ascensão da batalha pelos direitos civis dos negros, é o
episódio capital para a devida contextualização da coragem
antidiscriminatória de Ed Sullivan em seu programa semanal de variedades
na CBS. Performances musicais de afro-americanos já eram parte das
atrações, ainda que incomuns e sob constante crítica e pressão, mas o
“comunista” Belafonte seria inaceitável. A CBS vetou -e Sullivan,
recorda Belafonte, ficou “incomodado”.
“Estúpido e perverso” é como o
apresentador havia respondido à exigência de um governador da Georgia,
no sul dos EUA, de barrar artistas negros ao lado de brancos de
programas de televisão. “Quando veio à luz o nome da Harry Belafonte,
investiguei”, contou Sullivan. “Descobri que Harry é católico. Liguei
para o padre dele”. Sem deixar de sustentar: “Como americano, desprezo o
comunismo. Desprezo todo “ismo” como contrário ao bom e velho
americanismo”.
Um encontro foi marcado no hotel
em que Sullivan morava com a família em Nova York. Lembra Belafonte:
“Disse a ele: ‘Tudo que o senhor sugeriu de que sou culpado de ter feito
é verdadeiro. Mas me diga uma coisa: quando os irlandeses lutaram
contra os britânicos, o espírito rebelde foi considerado muito heroico
por todos os irlandeses do mundo. Explique-me qual a diferença quando
nós negros também atacamos contra a mesma opressão. (...) Pensávamos que
isso não era sobre a lealdade a uma nação, que era sobre a lealdade à
condição humana. E nossa humanidade estava sendo terrivelmente
brutalizada”.
“Sai do encontro sem saber do
resultado”, diz Belafonte. No domingo, Sullivan anunciava: “Aqui está um
dos grandes artistas de nosso país e um dos grandes artistas do mundo.
Aqui está Harry Belafonte”. Ok, havia a origem irlandesa e modesta da
família Sullivan, no Harlem novaiorquino. Nada é tão simples. Prefiro
notar, na biografia de Sullivan, quando combateu o segregacionismo,
ainda em 1929, como modesto jornalista esportivo.
A maior convivência com o universo
artístico veio como colunista social do popular New York Daily News.
“Acho que vaudeville foi uma grande parte do Ed Sullivan Show pois
aquela era sua gente”, crava o “soul man” Smokey Robinson Ao se tornar
mestre de cerimônias de espetáculos beneficentes no Madison Square
Garden, o treino de apresentador. A CBS decidiu apostar, em 1948, num
inédito programa noturno dominical ao vivo, com “um cara relaxado e
informal”.
Não era exatamente o perfil de
Sullivan, a polêmica foi grande, mas o programa decolou. “Nunca pensei
que eu fosse a atração. Sempre continuei procurando pelo melhor a
colocar no show”, acreditava o já veterano apresentador. “Aquelas
performances, sempre ótimas, ficavam ainda melhores na televisão, pois,
ao contrário do que acontece em um grande teatro, todo mundo tinha uma
poltrona na primeira fileira”.
Primeiro como “Toast of The Town”
(1947-1955), depois “The Ed Sullivan Show” (1955-1971), foram 23
temporadas de quase 1.100 programas com 10 mil artistas, das 20h às 21h
dos domingos (uma hora mais tarde na primeira temporada). Na internet,
especialmente no YouTube, não faltam números marcantes dos destacados no
filme. Sacha Jenkins (1971-2025) nos ofereceu o raro e inesquecível:
contexto. That’s entertainment? Por certo. E muito mais.