Por Amir Labaki
Há meio século a Fundação Getúlio
Vargas no Rio de Janeiro estabeleceu com o Centro de Pesquisa de
História Contemporânea do Brasil (FGV/CPDOC) um tesouro documental
incontornável. Dois anos mais tarde, expandiu-o ao estabelecer um
fundamental Programa de História Oral, numa era logo superada de
reservas acadêmicas sobre a metodologia. Aos poucos, o foco inicial
centrado nas elites políticas se estendeu. Em 2012, o justo
reconhecimento da necessidade de aprofundamento exigido pela história do
documentário no país deu início à um programa específico, que agora
enriquece as estantes com um primeiro volume.
“Memória do Cinema Documentário
Brasileiro – Histórias de Vida: Volume I - Ditadura Militar” (FGV
Editora/Faperj, 452 págs, R$ 85) edita lembranças de 13 documentaristas
nacionais relacionadas ao regime autoritário instaurado em 1964,
compostas a partir de entrevistas gravadas com 22 cineastas num período
de uma década. Celebre-se a organização liderada por especialistas
vinculadas ao conjunto do processo, como iniciadoras e participantes dos
depoimentos, Thais Blank, Arbel Griner e Adelina Cruz, com a
colaboração de Isabella Poppe.
Não se trata de uma transcrição
integral das entrevistas, disponibilizadas em texto e audiovisual no
site da FGV/CPDOC. O recorte temático adapta para o universo de
documentaristas a extraordinária compilação de depoimentos originais de
lideranças militares sobre a ditadura entre 1964 e 1985, realizados para
a mesma instituição e editada em três volumes, em 1994 e 1995, por
Maria Celina D’Araujo, Glaucio Ary Dillon Soares e Celso Castro: “Visões
do Golpe: 1964”, “Os Anos De Chumbo: A Repressão” e “A Volta Aos
Quartéis: A Abertura” (Relume Dumará e reedições).
Essa concentração a um período
histórico, para além dos limites especificamente cinematográficos,
deve-se a “um questionamento do próprio marco que estabelecermos para o
próximo projeto”, como aponta a minuciosa introdução. O foco inicial
repousava sobre se haveria “uma ligação pertinente entre o Cinema Novo e
o cinema documentário no Brasil”.
Duas provocadoras intervenções do
primeiro entrevistado, Eduardo Escorel, um dos inspiradores da atenção
para com o documentário da FGV/CPDOC, redirecionaram o projeto. “O elo
que existe chama-se Eduardo Coutinho”, sustenta Escorel. “Ele fez essa
passagem: da UNE Volante (AL – origem de ‘Cabra Marcado Para Morrer’,
1964/84) para ‘Jogo de Cena’ (2007). Agora, não acho que as pessoas que
começaram a fazer documentário na década de 80 e 90...”.
Montador de clássicos do Cinema
Novo como “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha, e realizador de
documentários essenciais como “Imagens do Estado Novo; 1937-1945”
(2016), Escorel desenvolve o argumento: “Acho que não é correto pensar
no Cinema Novo como um movimento. Acho que não há relação nenhuma entre o
que é feito hoje e o que era feito na década de 60”. Ainda pausa para
refletir: “Mas eu precisava pensar um pouco sobre isso”. A
desestruturação, contudo, está instaurada.
Uma nova estrutura se estabeleceu
para sua estreia editorial. “A escolha do recorte temático da ditadura
militar para este volume está estritamente ligada ao contexto em que as
entrevistas estão sendo editadas. Em 2024, o golpe militar de 1964
completa 60 anos, e esse livro quer se somar a uma série de publicações,
eventos e seminários realizados em diversos campos de estudo com o
objetivo de relembrar esse período da história do Brasil, e nunca deixar
que seja esquecido”.
Missão cumprida. Duplamente,
alíás, ao enriquecer com memórias de vida de um grupo de cineastas
essenciais para a cultura brasileira do último meio século, e em parte
não mais entre nós, as narrativas em torno do impacto devastador do
longuíssimo período autoritário.
As experiências são vastas e
inspiradoras, transcendem uma mesma geração e, no mais das vezes,
embelezam-se como se fortaleceram pelos entrecruzamentos -vitais e
criativos. Publicadas na ordem de suas realizações, e não da entrada na
cena cinematográfica nacional dos depoentes, as entrevistas nos permitem
mergulhar em parte expressiva das trajetórias de Eduardo Escorel,
Eduardo Coutinho, João Batista de Andrade, Jean-Claude Bernardet,
Maurice Capovilla, Helena Solberg, Ana Carolina, Geraldo Sarno, Vladimir
Carvalho, Silvio Da-rin, Andrea Tonacci, Joel Zito Araujo e Lucia
Murat.
Ainda que abordada em sua maioria,
a ausência de uma filmografia específica de cada cineasta desfalca essa
primeira edição. Tudo somado, não hesite, diante de um volume de
nascença com lugar nobre na crescente bibliografia do documentário
brasileiro.