Por Amir Labaki
Ao
lado de documentários e séries não-ficcionais de crimes verdadeiros,
biografias ou retratos de celebridades do cinema, esporte e música, em
geral sob rigoroso controle dos retratados ou seus herdeiros, se
tornaram apostas seguras para produtores, sobretudo plataformas de
streaming. Raríssimos desses últimos vão além da hagiografia ou do
instantâneo edificante. Lançado em Cannes Classics, em maio passado, e
agora disponível pelo HBO Max, “Jayne Mansfield, Minha Mãe”, de Mariska
Hargitay, é dos raríssimos que quebra a forma.
Jayne
Mansfield (1933-1967) celebrizou-se como um dos modelos maiores da
“loira burra” dos estertores da Hollywood clássica, de meados dos anos
1950 ao início dos 60. Moldada como um genérico de Marilyn Monroe, sua
popularidade foi imensa, mas seu apogeu foi breve e seu fim, não menos
precoce e trágico, num acidente de automóvel que a vitimou numa
madrugada aos 34 anos, quando sua carreira já se limitava a
apresentações como “entertainer” em boates da América profunda.
Estreando
agora como diretora, Mariska Hargitay alcançou o estrelato como atriz,
premiada com o Emmy pela investigadora Olivia Benson da longeva série
televisiva “Lei & Ordem: Unidade de Vítimas Especiais”, driblando
qualquer identificação com a célebre mãe. Ela mesma sintetiza o
distanciamento ao final do documentário: “Passei a maior parte da minha
vida tendo vergonha de minha mãe. Uma pessoa da qual eu não tinha
lembranças. Uma pessoa cuja voz eu não queria ouvir. Uma pessoa cuja
carreira me fez quer fazer diferente.”
O
documentário é assim um tardio acerto de contas. O título original em
inglês (My Mom, Jayne) apresenta melhor o projeto do que sua versão
brasileira, que ostenta o nome artístico da mãe. Como ela anuncia ao
começo do filme, trata-se de aproximar-se dela “não como o símbolo
sexual Jayne Mansfield, mas como minha mãe Jayne”.
A
quarta dos cinco filhos e filhas de Mansfield, Mariska tinha três anos
quando de sua morte. Dela, afirma de saída no filme, não guarda memória.
A distância é mútua, como indicam as raras fotos com ambas e o álbum
infantil vazio.
“Sou o Bebê
Número Quatro”, testemunha Hargitay, a partir da anotação da própria
mãe. “Acho que quando nasci, havia muita coisa acontecendo”. De fato, o
casamento entre Jayne Mansfield e o imigrado húngaro e ex-Mr. Universe
Mickey Hargitay vivia seus estertores quando de seu nascimento em 1964. A
crise parece maquiada numa reportagem televisiva do ano anterior, em
que anunciam a gravidez do terceiro bebê do casal (Miklós e Zoltán a
precederam, sendo a primogênita, Jayne Marie, filha do primeiro
casamento com Paul Mansfield).
Com
o auxílio de entrevistas com os irmãos e a irmã, com Ellen, a segunda
esposa de Mickey, e com o assessor de imprensa e biógrafo póstumo de
Mansfield, o quase centenário Raymond “Rusty” Strait, Mariska
reconstitui a carreira e a vida privada da mãe, tendo se preservado da
extensa bibliografia sobre a “bombshell” hollywoodiana. A jovem
estudante de piano e violino, órfã de pai aos três anos, sempre quis ser
atriz.
“Eu sabia que o
objetivo dela era ser uma atriz de verdade”, conta Jayne Marie. “Ela me
disse isso desde o começo. E ela tentou. (...) E então ela fez o que ela
tinha que fazer”.
O
documentário resume a ascensão de Jayne Mansfield, deixando de lado
tanto sua intensa carreira como modelo, que a levou às páginas da
nascente Playboy, quanto os estudos de atuação com o grande Baruch Lumet
(1898-1992), formador de uma geração em Dallas e pai do cineasta Sidney
Lumet. O tino dela para publicidade valeu-lhe pequenos papéis a partir
de um primeiro contrato com a Warner, em meados dos anos 1950, mas tudo
deslanchou mesmo, conta a primogênita, após a ruptura com o estúdio e a
estreia retumbante na Broadway, em 1955, no papel de uma estrela
hollywoodiana ao lado de Walter Matthau na comédia “O Grande Sucesso de
Rock Hunter”, que repetiria em 1957 nas telas, agora contracenando com
Tom Ewell.
Jayne Mansfield
fazia “o que tinha que fazer”. Como Marilyn, tingira os cabelos de
loiro. Os figurinos, e a ausência deles, destacavam seu busto generoso.
Uma voz algo infantilizada complementava a nova persona de “loira
burra”. “Eu olhava para o outro lado quando ela fazia a ‘voz pública’,
pois eu sabia que ela era muito, muito inteligente”, lastima o filho
mais velho.
A partir da
trágica e solitária morte de Marilyn, em 1962, conta Jayne Marie, “acho
que ela (a mãe) percebeu que toda aquela ‘persona loira’ a encaixotava. E
naquela época ela me disse que queria reverter aquela imagem”.
Mansfield
bem que tentou, sem sucesso, e veio a veloz queda, em pontuais
produções europeias e uma carreira sem brilho em apresentações em
boates. Foi na saída de uma delas, ao lado de três filhos e de um novo
namorado abusivo (seu advogado, Sam Brody), que tudo terminou num
desastre automobilístico.
Mariska
e os irmãos sobreviveram ao acidente e começaram uma nova vida familiar
com Mickey Hargitay e a nova esposa, Ellen. “Essas são as primeiras
lembranças que eu tenho”, frisa ela. Mais de duas décadas se passariam
até que o encontro com um dos líderes do fã-clube da Jayne Mansfield,
Sabin Gray, revelaria para ela a “muita coisa” que estava “acontecendo”
naqueles idos de 1962 e 1963.
O
terço final do documentário se dedica a isso -e preservo os leitores de
“spoilers”. O símbolo sexual passa a dividir o protagonismo com a atriz
premiada uma geração mais tarde. Reportagens, entrevistas e fotos
anteriormente exibidas são revistas e ressignificadas. É como se um novo
filme se somasse ao imediatamente anterior, ampliando-o.
“Jayne
Mansfield, Minha Mãe” resulta um tocante filme sobre identidade, numa
revisão feminista com rara intimidade das exigências da Hollywood
clássica e do alto preço pago pelas concessões aceitas pela ambição. O
próximo Oscar de documentário já tem forte título no páreo.