Por Amir Labaki
“Barry Lyndon” está
de volta. No cinquentenário de sua estreia, o décimo dos treze
longas-metragens dirigidos por Stanley Kubrick (1928-1999) ganha nova
versão restaurada em 4K. Depois de encerrar Cannes Classics em maio
último, a adaptação do romance picaresco do britânico William Makepeace
Thackeray (1811-1863) está retornando desde o mês passado às telas mundo
afora e acaba de sair em Blu-ray com três discos por The Criterion
Collection nos EUA. Por aqui, nos contentemos por enquanto com a
possibilidade de assistir à versão tradicional por aluguel em várias
plataformas de streaming.
Em
compensação, os cultuadores nacionais do diretor de “2001, Uma Odisséia
no Espaço” (1968) terão de esperar menos de dois meses para mergulhar na
edição brasileira da mais recente biografia do cineasta, “Kubrick, Uma
Odisseia” (Belas-Letras, 688 págs, R$ 169,90 em pré-venda pela Amazon).
Enriquecida por detalhes inéditos pesquisados nos arquivos de Kubrick
depositados na University of the Arts de Londres, sua dupla de autores,
Robert P. Kolker e Nathan Abrams, parte de sólidas publicações prévias
de ambos sobre o biografado.
Kolker
discutiu sua obra em dois estudos mais amplos anteriores (A Cinema Of
Loneliness, 1980, expandido em 2011, e The Extraordinary Image, 2016), e
editou em 2006 uma coletânea de ensaios contemporâneos sobre “2001”,
além de ter escrito com Abrams “Eyes Wide Shut: Stanley Kubrick and the
Making of His Last Film” (De Olhos Bem Fechados: Stanley Kubrick e a
realização de seu último filme, 2019). Por seu turno, Abrams também já
publicara, em 2018, um perfil biográfico do cineasta, enfatizando sua
relação conflituosa com as origens judaicas no Bronx novaiorquino,
“Stanley Kubrick: New York Jewish Intellectual” (Rutgers University
Press, 340 págs, US$ 34,95).
Todo
esse corpo reflexivo ecoa naturalmente na nova biografia, lançada no
início do ano passado nos EUA. Somado à documentação apenas recentemente
tornada pública, fortalece a análise fílmica e traz informações
inéditas sobretudo a respeito de alguns dos inúmeros projetos
desenvolvidos e nunca concretizados pelo próprio Kubrick, como “Aryan
Papers” (a partir de um romance de Louis Begley sobre um garoto judeu
polonês que se faz passar por católico durante o Holocausto) ou “A.I.”,
inspirado por histórias de Brian Aldiss e filmado pelo amigo Steven
Spielberg em 2001.
Justiça
seja feita: “Kubrick, Uma Odisseia” parte também de um precedente
estupendo, o pioneiro “Stanley Kubrick: A Biography” (Donald I. Fine
Books, 1997, 580 págs, US$ 29,95), de Vincent LoBrutto. O volume de
LoBrutto, original em sua reconstituição da formação de Kubrick e quanto
aos bastidores de sua revolucionária filmografia, viu-se precocemente
datado, apenas dois anos após sua publicação, pela surpreendente morte
do cineasta, enquanto dava os retoques finais em “De Olhos Bem Fechados”
(1999). Um quarto de século após o adeus a Kubrick, o livro de Kolker e
Abrams é naturalmente mais completo, mas a dívida para com LoBrutto,
insuficientemente reconhecida numa pontual referência no "ensaio
bibliográfico" ao fim do volume, é incontornável.
Detalhando
a longa (três anos) e sigilosa produção de “Barry Lyndon”, frente ao
desafio de suceder os megassucessos artísticos e comerciais de “2001” e
“Laranja Mecânica” (1971), “Kubrick, Uma Odisseia” a contextualiza:
“Relutante em abandonar suas vastas preparações para ‘Napoleão’, Kubrick
decidiu que seu próximo filme seria situado durante o final do século
XVIII. Mas, ao invés das Guerras Napoleônicas, o foco seria sobre os
costumes, classe e a ascensão e queda de um pretenso ‘gentleman’”. No
caso, um simplório e ambicioso irlandês (interpretado pelo americano
Ryan O’Neal) que tudo faz -guerra, jogo, adultério- para estabelecer-se
na aristocracia britânica.
Kubrick
apresenta a saga dele em ritmo compassado, em mais de três horas de
duração, narrada em terceira pessoa, e não pelo próprio protagonista
como no original, e rodada com lentes especiais (as ultrarrápidas 0,7 F
Zeiss) para dispensar os equipamentos tradicionais de iluminação em
favor da luz tênue e bruxuleante de velas nas filmagens em interior.
“Barry Lyndon” resultou um filme de época como nenhum outro, majestoso e
hipnótico, a um só tempo sóbrio e irônico.
Embora
até bem recebido na Europa, nos EUA a recepção crítica e comercial foi
decepcionante, não compensada nem mesmo pelo reconhecimento pela
Academia (sete indicações, incluindo filme, direção e roteiro, quatro
Oscars, direção de arte, figurino, fotografia, música).”‘Barry
Lyndon’ aparentemente ignorava as questões candentes da sociedade e do
cinema dos EUA de meados da década de 1970”, argumentam Kolker e Abrams.
A
plena reavaliação do filme como um dos mais pessoais e originais de
Kubrick se impôs apenas postumamente, já neste século. Na mais recente
votação de melhores filmes da história para a Sight and Sound, em 2022,
ei-lo como o 12º. preferido por cineastas e o 45º da crítica. Revisto
meio século após seu lançamento, “Barry Lyndon” libertou-se finalmente
do estigma do filme (de época) de consolação que Kubrick teria feito
para amainar a frustração pela impossibilidade de produzir seu
“Napoleão”.
“É uma
tragédia”, definiu-o Kubrick para o crítico francês Michel Ciment quando
do lançamento. “A tragédia, que tenta apresentar a vida da maneira mais
honesta e mais próxima da realidade que o melodrama, cria um sentimento
de desolação”. Parece que melhor o compreendem no presente Zeitgeist.