Por Amir Labaki
Nos dias que
correm, com a tensão internacional oscilando num novo pico para este
século, me vejo volta e meia pensando nos documentários de Errol Morris.
Não exatamente pelo mais recente deles, “Caos: Os Crimes de Manson”,
sua incursão pelo popular gênero do “true crime” no streaming, que não
me empolgou ao ser lançado em março passado pela Netflix. Inspirado por
um livro investigativo de Tom O’Neill, Morris volta a mergulhar nas
relações entre a CIA e pesquisas nos anos 1950 em torno de lavagem
cerebral, como na minissérie docuficcional “Wormwood” (Netflix, 2017).
Lá o foco se concentrava na morte atribuída a suicídio do cientista
militar Frank Olson, pela queda da janela de um hotel novaiorquino em
1953.
Seguindo a
trilha de O’Neill, um dos entrevistados principais no novo filme, Morris
se concentra agora sobre as várias teses em torno do assassinato em Los
Angeles, em agosto de 1969, da atriz Sharon Tate, grávida de seu marido
Roman Polanski, de quatro amigos na mansão do cineasta e, no dia
seguinte, do executivo Leno LaBianca e esposa, por Charles Manson e seus
seguidores no culto macabro conhecido como sua “Família”. Recorrendo a
extenso material de arquivo, submetido a belas intervenções gráficas, o
documentarista, como antes o repórter, alimenta a suspeita do
envolvimento de Manson com as experiências da CIA com LSD para formar um
exército subterrâneo submetido a lavagem cerebral, como o protagonista
de “Sob O Domínio do Mal” (John Frankenheimer, 1962, citado, claro, no
documentário), mas não consegue cravar mais do que coincidências
curiosas.
Navegar pela obra de Errol Morris,
mesmo em seus títulos de menor impacto, como “Caos” ou seu
filme-entrevista com o mestre dos thrillers de espionagem John le Carré
(O Espião Que Saiu do Frio), “O Túnel dos Pombos” (AppleTV+, 2023),
sempre revigora a admiração pelo poder do melhor cinema não-ficcional.
Para compreender o estado das coisas no mundo hoje, há raras
experiências cinematográficas mais iluminadoras do que sua trilogia de
retratos de homens públicos dos EUA, especialmente o primeiro (Sob A
Névoa da Guerra, vencedor do Oscar em 2003) e o terceiro (American
Dharma, 2018, inédito no Brasil), dedicados ao ex-secretário de Defesa
Robert McNamara (1916-2009) e a Steve Bannon, agitador da “alt-right”
americana e internacional, documentarista eventual e ex-diretor
executivo da vitoriosa primeira campanha presidencial de Donald Trump em
2016. (“The Unknown Known”, 2013, sobre o também ex-secretário de
Defesa de George W. Bush, Donald Rumsfeld, 1932-2021, me parece menos
instigante frente à opacidade do personagem).
As imensas dificuldades de
distribuição em salas e em streaming de “American Dharma”, tendo
lançamento tímido mesmo no mercado americano (disponível agora em DVD),
limitaram injustamente o conhecimento daquele que o próprio Morris
classifica como “um dos melhores filmes que já fiz”. “Eu tento entrar na
cabeça de alguém. No caso de Bannon, por meios dos filmes” -os
dirigidos por ele, com títulos autoexplicativos como “Battle for
America” (2010) e “District of Corruption” (2012), ou seus favoritos, à
frente “Almas em Chama” (1949), drama de guerra dirigido por Henry
King.
A mensagem martelada pelo
comandante de bombardeiros interpretado por Gregory Peck é vitória a
qualquer preço. “Um mundo desprovido de moralidade ou ética, onde a
única preocupação é a coesão do grupo e a vitória”, escreveu Morris em
The Atlantic. A entrevista acontece num cenário que replica o hangar do
filme predileto de Bannon. “As pessoas não entenderam que o set era uma
metáfora”, lamentou Morris.
Arriscando uma hipótese para as
razões da barreira para a comercialização, Morris conjectura que sua
conversa com Bannon foi considerada “cinema tóxico”, ao conceder a ele
uma plataforma para a pregação de sua “ideologia de destruição”, numa
“campanha que está trazendo o fascismo para os EUA”, afirmou o cineasta
numa entrevista após uma projeção à editora Jamilah King da revista
progressista Mother Jones (o único extra do DVD).
Indo ao ponto com Allisa Wilkinson
do site Vox, sintetizou: “É a política do ‘foda-se’. Ei, você aí fora,
vá se foder. É destrutivo e tem a ver com incendiar o lugar inteiro. Tem
um quê apocalíptico”. Isso tudo, note-se, filme e declarações, ainda
durante o primeiro governo Trump. “Já é terrível o bastante, mas pode
ser ainda pior”, profetizou Morris.
Fade out, fade in para 2025. Com
guerra em toda parte, e o espectro de extensões em dimensões
inimagináveis, vale retornar às lições do ex-falcão arrependido Robert
McNamara, secretário de Defesa (JFK, Johnson, Nixon) durante a escalada
americana no Vietnã. Há duas versões: onze lições destacadas por Morris
em “Sob A Névoa da Guerra” (disponível em streaming) e dez escritas pelo
próprio McNamara e adicionadas como extras no DVD, refutando as do
filme.
São, contudo, complementares. As
mais urgentes: “Empatize com seu inimigo”; “Proporcionalidade deveria
ser uma guia na guerra”; “Não se pode mudar a natureza humana”; “A
combinação vaga da falibilidade humana e de armas nucleares nos levará à
destruição de nações”.
McNamara adverte: “Acho que a raça
humana precisa pensar mais sobre matar, sobre conflito. É isso que nós
queremos neste século 21?”. Basta ler este jornal, oh boy, para notar
quão poucos o estão escutando.