Por Amir Labaki
Há cinquenta anos
nesta semana, para ser preciso na última quarta, 30 de abril,
encerrava-se um dos capítulos mais ignóbeis do século 20, com a queda de
Saigon e o fim da Guerra do Vietnã. Durante cerca de uma década, sob
quatro presidentes (JFK, Lyndon Johnson, Richard Nixon e Gerald Ford),
os EUA combateram no Sudeste Asiático as tropas do Vietnã do Norte
comunista, mobilizando cerca de 2,8 milhões de soldados. Saíram
humilhados e internamente divididos, com cerca de 58 mil americanos
mortos; três milhões de vietnamitas morreram no conflito.
Duas
novas séries documentais chegam ao streaming no marco deste meio século
da derrota militar americana. Dando continuidade à série “Ponto de
Virada”, que já dedicou temporadas à Guerra ao Terror depois do 11 de
Setembro (2021) e à corrida nuclear desde o fim da Segunda Guerra
(2024), a Netflix lançou nesta semana, depois do fechamento desta
coluna, sua reconstituição em cinco episódios da Guerra do Vietnã. A
Apple TV+ saiu na frente em fins de janeiro com as seis partes de
“Vietnã: A Guerra Que Mudou os EUA”, dirigido pelo britânico Rob
Coldstream (The Trump Show).
O
feito de Coldstream se robustece quando lembramos que há menos de uma
década ninguém menos que Ken Burns, ao lado de Lynn Novick, estreava na
emissora pública americana PBS os dez episódios de “A Guerra do Vietnã”
(2017), ao lado de “Jazz” (2001) e “The War” (2007) no ápice de sua
radiografia da história americana. Com capítulos mais longos, cada um da
duração de um longa-metragem, a série de Burns e Novick é mais
minuciosa e analítica, além de estender-se por um arco histórico maior,
desde o Vietnã de meados do século 19. Coldstream concentra-se sobre os
dez anos da intervenção americana, em episódios mais compactos, de
duração média de 45 minutos.
“Vietnã:
A Guerra Que Mudou os EUA” se estrutura num tripé: uma narração lida
por Ethan Hawke, entrevistas apenas com testemunhas e participantes da
guerra e filmagens exclusivamente da época. Um letreiro explica: “Todas
as imagens de arquivo desta série são reais e foram filmadas durante a
Guerra do Vietnã. Nos casos em que a filmagem de um evento específico
não estava disponível, usamos material que ilustra momentos comparáveis
na guerra”.
Nenhum conflito
militar fora antes assim televisionada, a cores e no calor da hora.
Pensando bem, nem depois. É possível acompanhá-la passo a passo, da
escalada no Vietnã do Sul à tomada de decisões e crescente oposição
interna nos EUA. Sucedem-se os episódios: Botas no Chão; Revolta; Essa
Guerra Não É Minha; Motim; Volta Para Casa; O Desfecho.
Cada
capítulo gira em torno de testemunhas específicas, principalmente
americanas, mas também vietnamitas dos dois lados do embate, todas
referenciadas com imagens da época dada a riqueza dos arquivos. O
roteiro em geral os organiza em pares e a inevitável gravação de
reencontros emociona mesmo quando já se tornaram previsíveis.
A
galeria de personagens é inesquecível. Bill Broyles tinha 25 anos
quando trocou voluntariamente um período acadêmico na Inglaterra pela
liderança de um pelotão no Vietnã. Não contava enfrentar subordinados já
saturados pela irracionalidade dos combates. John Bagley acreditava ter
tirado a sorte grande como DJ numa área tranquila até que os
vietcongues liquidaram sua ilusão (sim, é inspirado nele o personagem de
Robin Williams em “Good Morning, Vietnam”).
A
experiência de dois combatentes afro-americanos é quase polar. Malik
Edwards ao voltar aos EUA se uniu aos Black Panthers (Panteras Negras) .
Já Melvin Pender deixou o front para ganhar uma medalha de ouro como
velocista nas Olímpiadas do México de 1968.
Coberturas
internacionais se restringiam a um clube do Bolinha, mas duas
repórteres fizeram história: Thea Rosenbaum dando o furo sobre a
ofensiva vietcongue em Hue e Hilary Brown cobrindo a ofensiva final
sobre Saigon. Por sua vez, uma enfermeira voluntária, Joan Furey,
revoltou-se frente tanta “morte desnecessária, inútil” que não se
limitou a exagerar nos relatórios quanto à gravidade de ferimentos para
enviar mais soldados de volta para casa, concedendo também entrevistas
para TV reclamando o fim da guerra.
Filho
de um combatente vietcongue, Nguyen Thanh Trung infiltrou-se entre os
pilotos sul-vietnamitas treinados pelos norte-americanos até desviar um
avião para um ataque solo no palácio presidencial às vésperas da tomada
de Saigon. Já Nhan Lee, aos cinco anos, foi salvo quando o pai, um
piloto militar sul-vietnamita, pousou um pequeno avião num porta-aviões
americano que jogou ao mar uma série de helicópteros para viabilizar o
resgate.
Com guerras por todo lado, lembrai-vos do Vietnã. Não faz tanto tempo assim.