Por Amir Labaki
É difícil imaginar algo novo a ser dito sobre
Humphrey Bogart (1899-1957). Todo mundo o viu ao menos em “Casablanca”
(1943), formando com Ingrid Bergman um dos pares românticos mais
inesquecíveis do cinema. Mais de quarenta anos após sua morte, na virada
do século 20 para o 21, uma pesquisa do American Film Institute o
consagrava como a maior estrela masculina da história de Hollywood.
Um quarto de século se passou desde então e
Bogart parece manter-se mais vivo na memória do que contemporâneos de
tela como Cary Grant, Gary Cooper, James Stewart ou John Wayne. Não lhe
faltam biografias, uma das mais recentes delas, lançada por Stefan
Kanfer em 2011, dedicada sobretudo a inventariar a persistência de sua
popularidade, “Tough Without a Gun – The Life and Extraordinary
Afterlife of Humphrey Bogart” (Random House, inédita no Brasil).
Eis que acaba de estrear em streaming por aqui
“Bogart: Life Comes in Flashes”, da cineasta irlandesa Kathryn Ferguson.
Não o descarte na atual inflação de documentários biográficos ou
autobiográficos de estrelas do cinema e da música, em geral complacentes
e monótonos. Sim, trata-se de um filme oficialmente apoiado pelo
Humphrey Bogart Estate, contando com o próprio filho, Stephen Bogart,
entre os produtores executivos e entrevistados. Mas se trata de uma
reveladora radiografia de Bogart com o olhar de nossos tempos.
Depois de dissecar a cantora irlandesa Sinéad
O’Connor (1966-2023) em “Nothing Compares” (2022), Kathryn Ferguson
trouxe a mesma perspectiva aguda e feminista para seu retrato de Bogart.
Num debate em janeiro após uma première em Los Angeles no American Film
Institute, Ferguson frisou o que seu filme buscou de original: o homem
por trás do mito e as mulheres que respaldaram sua ascensão.
“Bogart: Life Comes in Flashes”, como sustentou
no mesmo encontro o crítico Leonard Maltin, “é muito mais pessoal, mais
intimista, do que os documentários sobre gente de cinema tendem a ser”.
A estrutura segue o modelo “do berço à cova”, mas concentra-se na vida e
não na filmografia. Os clipes de filmes destacam evidentemente os
títulos essenciais, de “A Floresta Petrificada” (1936) a “A Nave da
Revolta” (1954), mas são igualmente citados para ilustrar momentos
marcantes de sua biografia. Uma narração em primeira pessoa, a partir de
entrevistas do ator, é o cimento sonoro principal, alternando-se com
depoimentos de amigos, colegas e estudiosos.
A carreira de Bogart foi tudo menos meteórica.
Ele já passava dos quarenta anos quando se tornou uma estrela com o
papel do cínico investigador particular Sam Spade, em “Relíquia Macabra”
(1941), adaptado por seu amigo John Huston do romance “noir” de
Dashiell Hammett. Bem-nascido na alta burguesia novaiorquina, Bogart
debutou sem grande estrondo na Broadway, tentou sem maior sucesso uma
carreira na Hollywood dos primeiros anos do filme sonoro, no início dos
anos 1930, e conquistou certa estabilidade com ator contratado da Warner
apenas após repetir em filme seu sucesso teatral como o gângster de “A
Floresta Petrificada”.
Ferguson matiza a história da vida conjugal de
Bogart, rompendo com a versão popularizada de um primeiro casamento de
juventude (Helen Menken, 1926), um segundo de ocasião (Mary Philips,
1928), um terceiro infernal (Mayo Methot, 1938) e um quarto idílico
(Lauren Bacall, 1945). Como o próprio Stephen reconheceu no debate, o
filme é sobretudo a respeito “das mulheres que na verdade o
impulsionaram”.
Menken era uma grande diva da Broadway dos anos
1920, quando se iniciava o jovem Bogart. Philips era uma promissora
iniciante em Hollywood ao se casarem. Methot tinha uma ascendente
carreira fílmica, intérprete de personagens ousados e independentes, que
foi ceifada pelo repressor código Hays estabelecido em 1934 para
“moralizar” os estúdios. Foi ela, contudo, o esteio de Bogart durante a
lenta evolução de coadjuvante em papéis de gângsters até o estrelato com
“Relíquia Macabra” e “Casablanca”. A história limitou a demonizá-la
pelas bebedeiras e brigas públicas.
Cenas de três filmes hoje clássicos (Uma
Aventura na Martinica; À Beira do Abismo; Paixões em Fúria) e trechos
inéditos de “home movies” complementam-se para reconstituir o casamento
entre Humphrey Bogart e Lauren Bacall. Eletricidade, estabilidade. Ele
tinha 44 anos e ela, 19, quando em 1944 Howard Hawks os reuniu para
rodar a adaptação nada ortodoxa de Hemingway. Formaram um dos casais
mais celebrados de Hollywood por 13 anos até a morte precoce de Bogart.
Humphrey DeForest Bogart emerge mais complexo
do filme de Ferguson. O mistério Humphrey Bogart continua a
desafiar-nos. Como sintetizou Raymond Chandler, “para dominar uma cena
ele só precisa entrar nela”. Isso, ninguém pode negar.