Por Amir Labaki
“Beatles
‘64”, de David Tedeschi, documenta dois fenômenos culturais de impacto
duradouro e planetário. O próprio título adianta o primeiro deles: o
retumbante sucesso da primeira turnê de duas semanas pelos EUA do
quarteto de Liverpool, em fevereiro de 1964. O segundo é a revolução no
filme documentário detonada pela escola do Cinema Direto, com câmeras
mais leves, registro de som sincronizado em gravadores portáteis e maior
intimidade nas tomadas, do qual foram pioneiros e protagonistas os
irmãos Albert (1926-2015) e David Maysles (1931-1987), autores do
registro clássico sobre o qual se estrutura a nova atração do streaming
Disney+.
Intitulava-se
“What’s Happening! The Beatles in the USA” (1964) o filme original
lançado pelos Maysles sobre o batismo americano da banda. Era uma versão
em longa-metragem, de 81 minutos, do especial de meia hora produzida
originalmente para a TV britânica. Trata-se do segundo projeto solo dos
irmãos, logo após do retrato do produtor e distribuidor americano Joseph
E. Levine em “Showman” (1963). O núcleo básico que a partir de fins dos
anos 1950 desenvolveu o Cinema Direto nos EUA, formado em torno da Drew
Associates por Robert Drew, D. A. Pennebaker, Richard Leacock e pelo
próprio Albert, dispersava-se -para não menos históricas trajetórias
independentes pelo meio século seguinte.
O
marco zero do movimento fora “Primárias” (1960), de Robert Drew, que
acompanhou o embate entre os senadores John Fitzgerald Kennedy e Hubert
H. Humphrey, no estado de Wisconsin, pela indicação como candidato do
Partido Democrata à eleição presidencial daquele ano. Nenhum filme o
supera na captação em estado bruto do carisma e da mística de JFK, que
bateria o republicano Richard Nixon nas urnas meses depois.
O
traumático fim da breve era Kennedy, com seu assassinato em Dallas em
novembro de 1963, simboliza também o ocaso daquela parceria
cinematográfica. Um mago da câmera de filmar, como Pennebaker e Leacock,
Albert se associou ao irmão caçula David numa nova produtora. Como
codiretores, desenvolveram o estilo e expandiram os temas, de retratos
curtos de personalidades como Marlon Brando, Truman Capote e Orson
Welles a iluminadores mergulhos na alma americana a partir de estudos de
anônimos, em obras-primas como “Caixeiro-Viajante” (1969) e “Grey
Gardens” (1975).
Não
apenas Albert e David apostaram na aplicação do novo método do Cinema
Direto para inéditas aproximações de artistas célebres. Para ficar
somente no período imediato à separação, Drew realizaria filmes
originalíssimos sobre a estreia na Broadway de Jane Fonda e sobre uma
turnê de Duke Ellington, enquanto Pennebaker faria o retrato ainda
insuperável de Bob Dylan em “Dont Look Back” (1967).
“What’s
Happening! The Beatles in the USA” inaugurou esse segundo capítulo da
saga americana do Cinema Direto.Nada mais natural do que basear-se em
seus registros para um retorno ao primeiro encontro dos Beatles com os
EUA -e vice-versa.
“Beatles
‘64” extrai do material dos Maysles muito da temperatura da eufórica
recepção juvenil a George, John, Paul e Ringo, e das andanças deles por
Nova York, Washington e Miami. Complementam-no com fartura outros
materiais -cinematográficos, televisivos, fotográficos, jornalísticos e
radiofônicos- e o contextualizam cerca de uma dúzia de depoimentos de
testemunhas da chegada ao país da febre beatlemaníaca -mulheres e
homens, curiosamente em sua maioria com carreiras posteriores como
artistas, da música ou da palavra, famosos e menos conhecidos.
Seguindo
uma estrutura cronológica, o diretor David Tedeschi alinhava tudo em
torno de duas ideias centrais. A primeira é corroborada por um
depoimento de Paul McCartney: “Quando viemos, os EUA estavam de luto.
Foi logo depois de Kennedy ter sido assassinado. Talvez os EUA
precisassem de algo como os Beatles para se erguer do luto e dizer -vida
que segue”.
A
segunda tese essencial é da transversalidade étnica e social daquela
explosiva recepção. O hipnótico impacto da apresentação de estreia na TV
americana, no Ed Sullivan Show de um domingo à noite, assistido por
mais 70 milhões de pessoas, é documentado por uma filmagem na casa de
uma modesta família hispano-americana, os Gonzales, e pelo depoimento de
uma das filhas do maestro Leonard Bernstein, a hoje escritora Jamie.
Depoimentos
nas ruas de Nova York registram o entusiasmo também entre
afro-americanos, e não apenas entre as adolescentes “WASP” postadas
entre gritos e cartazes na entrada do Plaza Hotel em Manhattan. O
lendário cantor de R&B Smokey Robinson lembra como conhecera numa
turnê o quarteto antes da fama e quão “eufórico” ficara ao saber que
eles haviam gravado uma de suas canções (You’ve Really Got a Hold On
Me).
Como
reagiram àquele furacão os próprios Beatles? Paul McCartney apresentou
sua interpretação histórica. Naturalmente em arquivos, George Harrison
frisou a importância do humor da banda, típico de Liverpool, enquanto
John Lennon sustentava que “os pais não gostavam de rock n’roll”,
frisando as raízes do gênero na “black music”. Já Ringo Starr se diverte
exibindo itens de seu museu particular ao aqui produtor Martin
Scorsese, surpreendentemente contido para quem antes dirigira “George
Harrison: Living In The Material World” (2011, editado, não por
coincidência, por Tedeschi).
A
contenção de Scorsese sugere justa reverência à arte de Albert e David
Maysles, a quem “Beatles ‘64” é merecidamente dedicado. Passados 60
anos, suas filmagens ainda encantam ao representar com energia e vigor o
objetivo essencial do Cinema Direto: transmitir a sensação de estar lá,
na fórmula certeira de um de seus pioneiros, Richard Leacock. Naquela
quinzena, os “Fab Four” eram seis, numa cruzada para realegrar uma
América órfã.