Por Amir Labaki
Um volume polifônico
vem estabelecer o destaque devido a Sergio Muniz (1935-2023) na
história do cinema brasileiro. “Por um Cinema de Cordel – Um Livro de
Sergio Muniz” (Alameda Editorial, 550 págs, R$ 127,30) tem esmerada
organização dos pesquisadores Marcius Freire e Andréa C. Scansani, a
partir do meticuloso arquivo preservado pelo próprio Muniz. A edição foi
acompanhada até a versão final pelo cineasta, que infelizmente nos
deixou antes do livro alcançar às livrarias, com lugar assegurado na
bibliografia essencial do documentário brasileiro.
Como adiantado na apresentação, “Por Um Cinema
de Cordel” cerra foco na atividade fílmica de Muniz, não abarcando sua
vertente literária, poeta antes que cineasta, também ficcionista na
maturidade. Ao lado de Vladimir Carvalho (1935-2024), autor de dois
textos na antologia, foi ele dos raríssimos diretores brasileiros
exclusivamente dedicados à produção documental. Ambos também exerceram
marcantes trajetórias universitárias, o primeiro em Brasília, o segundo,
com papel central nos primeiros anos da Escuela Internacional de Cine y
TV de San Antonio de los Baños em Cuba.
Em mais de meio século de cinema, celebrado por
uma pioneira retrospectiva no É Tudo Verdade de 2017, Sergio Muniz nos
legou uma filmografia documental variada, complexa e algo compacta de 19
títulos como diretor, privilegiando o curta-metragem e assinando apenas
dois longas, “Andiamo in ‘Merica” (1978), sobre a imigração italiana, e
o ensaio articulando depoimentos “Amizade” (2009). Foi essencial ainda
sua participação como pesquisador e produtor da histórica coleção de
filmes sobre a cultura popular brasileira conhecido como Caravana
Farkas, para a qual dirigiu três de suas principais obras, “Beste”
(1969), “Rastejador, s.m.” (1969) e “De Raízes & Rezas, Entre
Outros” (1972).
O livro empresta seu título de uma fórmula
criada pelo próprio cineasta a respeito de seu primeiro e originalíssimo
curta-metragem, “Roda e Outras Estórias” (1965), realizado em diálogo
com Geraldo Sarno quase simultaneamente à parceria, Muniz como produtor
executivo, Sarno, diretor, em “Viramundo” (1965), o clássico sobre a
imigração nordestina para o Sudeste da primeira fase, de cinco filmes,
do ciclo produzido por Thomaz Farkas (1924-2011). Em entrevistas e
textos próprios no volume, o próprio Muniz explica a definição que
inspirou o batismo de sua primeira produtora.
“Assim como tinha literatura de cordel, eu fiz o
Cinema de Cordel, que era a ideia de fazer alguma coisa com esse estilo
de literatura, que fosse uma coisa popular, que pudesse ser consumida
como se fosse um livro de cordel, que estivesse essa dinâmica de um
livro de cordel, que fosse anônima”, escreveu Muniz em 2001.
Inspirado e editado a partir de cinco canções
do então iniciante Gilberto Gil, “Roda e Outras Estórias” é um filme de
protesto contra a recém instaurada ditadura militar, em torno da mesma
“temática do sertão” de “Viramundo”, como notou Jean-Claude Bernardet,
mas sob uma nova forma, entre o ensaio de arquivo e o clipe. Numa dessas
sincronicidades iluminadas da história da arte e do filme, enquanto
Muniz realizava “Roda”, o documentarista cubano Santiago Álvarez
(1919-1998) editava em Havana “Now!” (1965), um primo estilístico sobre a
repressão aos movimentos pelos direitos dos afro-americanos.
Similar inventividade formal na edição de
imagens e sons de origens múltiplas aproxima “Roda” sobretudo de dois
outros curtas de Muniz, “Beste” e “Você Também Pode Dar Um Presunto
Legal” (1973-2006). No primeiro, rodado no norte da Bahia, a fabricação
de uma besta, uma arma rudimentar, e a chegada do homem à Lua pela Apolo
11 comentam-se mutuamente. No segundo, realizado clandestinamente no
auge da repressão pelo regime militar e mantido inédito por mais de três
décadas para preservar os colaboradores do filme, registros factuais e
filmagens de montagens teatrais estruturam-se num ensaio de denúncia
sobre os laços entre a violência política e o Esquadrão Morte comandado
pelo delegado Sérgio Fleury. Mais de uma centena de testemunhos de
artistas e intelectuais brasileiros e internacionais sobre o impacto da
tardia revelação do filme foram reunidos na penúltima parte do livro.
Na heterogeneidade das contribuições
compiladas, de ensaios acadêmicos a textos jornalísticos, de entrevistas
e escritos de Muniz a depoimentos e mensagens de amigos e colegas, “Por
Um Cinema de Cordel” espelha com sagacidade e vigor o espírito de
colagem poético-política das mais originais obras de Sergio Muniz. “Faço
cinema para que, apesar das minhas limitações e das limitações do
cinema frente à nossa realidade, essa realidade possa ser modificada ou
pelo menos influenciada. E se isso for impossível, me bastará, até
quando não sei, conhecer e ser senhor da realidade”. Assim se definia em
1966 o jovem cineasta. É belo como foi fiel a si mesmo até o fim.