Por Amir Labaki
A força
dos arquivos está ao centro da premiação principal da 37ª edição do
Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA), o maior
evento dedicado à produção não-ficcional, encerrado no último domingo
(24). “Trens”, do polonês Maciej J. Drygas, venceu a competição de
longas internacionais, assim como o prêmio de melhor montagem, enquanto
“O Propagandista”, de Luuk Bouwman, triunfou na disputa holandesa.
Em decisão unânime, o júri
principal destacou em sua justificativa “o arrojado e inventivo uso de
arquivo” em “Trens”. Sem recorrer a intertítulos ou narração,
utilizando criativa edição de som, totalmente em preto e branco, o filme
descortina essencialmente a história do século 20 a partir do
desenvolvimento e utilização da malha ferroviária pela moderna sociedade
industrial.
“Eu não queria fazer apenas um
filme sobre a história das locomotivas. Queria mostrar uma verdade mais
profunda sobre a condição humana a partir de viagens de trem”, disse
Drygas a Geoffrey Macnab do jornal especializado online Business Doc
Europe.
Em 80 minutos de duração, “Trens”
utiliza trechos de filmes de 45 dos 98 arquivos cinematográficos
pesquisados mundo afora, principalmente europeus, mas também dos EUA,
México e Nova Zelândia. O custo cada vez mais astronômico de materiais
de época, no mundo afora como no Brasil, foi comentado pelo cineasta
polonês, que reconheceu ser “um filme muito, muito caro, provavelmente o
mais caro documentário já feito na Polônia”.
Dos primeiros registros fílmicos
da construção de linhas ferroviárias a luxuosas viagens no fim do século
passado, reconstitui-se a experiência coletiva de homens e mulheres,
crianças e idosos, ricos e desafortunados, anônimos e famosos, civis e
militares -muitos militares. O avanço do cruento século 20 se descortina
registro após registro, dos mutilados das frentes de batalha da
Primeira Grande Guerra às vítimas do Holocausto nazista da Segunda
Guerra.
“Trens foram construídos pelo
prazer de viajar”, recorda Drygas a Macnab. “Mas muito rapidamente se
tornaram a maldição da humanidade”. É impossível assistir à carnificina
retratada em “Trens” sem associar suas imagens do passado a flagrantes
do presente, na mesma Europa, da guerra da Rússia de Putin contra a
Ucrânia. A epígrafe de Kafka que abre o filme instaura de saída o
paralelo: “Há muita esperança, uma infinita quantidade de esperança...
Mas não para nós”.
A ocupação militar da Holanda pela
Alemanha nazista surge sob nova perspectiva em “O Propagandista”. Como
Marcel Ophüls lançou luz no colaboracionismo na França sob o regime
títere nazi de Vichy em “A Dor e A Piedade” (1969), Bouwman radiografa
os holandeses que participaram voluntariamente do domínio alemão a
partir da trajetória do cineasta, produtor e burocrata Jan Teunissen
(1898-1975).
Em parte, foi ele uma espécie de
Leni Riefenstahl neerlandês, dirigindo e supervisionando filmes de
propaganda, mesmo sob formatos não tradicionais como um seriado
ficcional e uma animação marcadamente antissemitas. Teunissen não se
furtou ainda de vestir o uniforme, filiar-se ao partido nazista local e
inscrever-se na SS, vangloriando-se como “o czar” da indústria
cinematográfica do país sob regime totalitário.
Filho de uma família abastada,
Teunissen se apaixonou desde cedo pelo cinema, preservando extensamente o
cotidiano familiar em “home movies” em 16 e mesmo 35 mm. Adequado para
sua futura retórica negacionista, seu primeiro documentário de
curta-metragem, “Sexta à noite ou Sabbath”, retratava de forma empática
o bairro judaico de Amsterdã do início dos anos 1930; não tem ele como
justificar, contudo, a utilização em 1940 de trechos do curta num dos
mais asquerosos filmes de propaganda antissemita, “O Eterno Judeu”, de
Fritz Hippler.
Durante a produção de seu
documentário anterior, “Todos Contra Todos” (2019), sobre a história do
fascismo na Holanda, Luuk Bouwman encontrou um dos arquivos sonoros
essenciais de “O Propagandista”: uma entrevista de sete horas com
Teunissen realizada em meados dos anos 1960 pelo historiador Rolf
Schurrsma. Não menos fundamental foi o extraordinário trabalho de
pesquisa sobre o cinema holandês dos anos 1940 do também historiador
Egbert Barten, fonte incontornável de documentos, filmes da época e
entrevistas com colaboradores de Teunissen, que, como o ex-czar,
seguiram carreiras de sucesso no pós-guerra, sobretudo na produção
publicitária.
Comprovando a vitalidade dos
documentários de arquivo do IDFA 2024, o prêmio específico Beeld &
Geluid IDFA ReFrame Award foi atribuído a um terceiro destaque, “Meu
Planeta Roubado”, em que a cineasta iraniana Farahnaz Sharifi mergulha, a
partir de registros amadores de famílias, no cotidiano de repressão às
mulheres sob o regime radical islâmico instaurado em 1979.
Outro embate com a opressão,
especialmente por meio da censura artística, surge traduzido por meio de
uma estrutura original, centrada em gravações sonoras, no cubano
“Crônicas do Absurdo”, que premiou Miguel Coyula na disputa da mostra
Envision, a segunda mais importante do festival. Parafraseando o título
do clássico antifidelista realizado em 1987 pelo grande Néstor Almendros
(1930-1992), alguém não apenas escutava.