Por Amir Labaki
Morte
e Vladimir Carvalho (1935-2024) soam como termos antitéticos na mesma
frase. A alegria de viver, a intensidade de sua personalidade, a ternura
de sua presença, o compromisso de registrar e preservar em filmes, em
escritos, em acervo, os brasileiros e o Brasil a seu redor tingem de
absurdo o desaparecimento no último dia 25 do imenso documentarista
paraibano há meio século radicado em Brasília.
Vladimir
Carvalho é o mais importante cineasta dedicado exclusivamente ao
documentário da história do cinema brasileiro. De seu pioneiro
engajamento na realização por seu ex-professor Linduarte Noronha
(1930-2012) do clássico curta documental proto-cinemanovista “Aruanda”
(1959) a seu último longa-metragem, “Giocondo Dias – Ilustre
Clandestino” (2022), ele desenvolveu uma complexa e diversa filmografia
de quase três dezenas de filmes.
A
vocação de documentarista foi-lhe despertada pela “revelação” com “O
Homem de Aran” (1934), o retrato do cotidiano inóspito de pescadores de
uma ilha irlandensa pelo pioneiro Robert Flaherty (1884-1951). “Eu não
tinha vocação para o espetáculo”, recordava Vladimir. “Sou um sujeito
muito tímido e pensava nisso quando lia sobre a direção de atores, sobre
aquela parafernália hollywoodiana. Vi então que o documentário era um
cinema de câmera, uma coisa mais natural, buscava cinema na realidade
viva, palpitante”.
Seus
filmes desenvolvem-se em dois vetores, que não correm em paralelo, mas
sim incessantemente se cruzando e alimentando. De um autodefinido “filho
da civilização do couro”, o primeiro eixo documenta as vidas, a
sociedade, a cultura e a política nordestinas. O segundo investiga a
esfinge Brasília, na qual Vladimir mergulhou radicalmente desde a
chegada em 1969, como “um candango a mais”, abraçado como revelação de
cineasta e logo professor universitário.
No
eixo do Nordeste, inaugurado pelo curta de estreia “Romeiros da Guia”
(1962, co-direção de João Ramiro Melo), as obras centrais são os curtas
“A Bolandeira” (1968), “Incelência Para um Trem de Ferro” (1972) e “A
Pedra da Riqueza” (1976) e seu primeiro e visceral longa-metragem, “O
País De São Saruë”, terminado em 1971, censurado pela ditadura militar e
lançado apenas em 1979. Estruturado em mosaico, em torno de dez
sequências principais, tendo por âncora um poema de Jomas Moraes Souto,
radiografa a polaridade social no “polígono da seca” em torno do tripé
algodão-boi-minério.
No vetor
brasiliense, de largo arco temático e formal em curtas como “Brasília
Segundo Feldman” (1980) e longas-metragens como “Barra 68” (2000) e
“Rock Brasília -Era de Ouro” (2001), o filme-síntese é “Conterrâneos
Velho de Guerra” (1990), sobre a saga e as chagas da construção da nova
capital federal por nordestinos e nordestinas, candangos como ele. “O
que pensei em resgatar, principalmente”, escreveu Vladimir, “foi o clima
de absoluta impunidade que prevaleceu enquanto durou a construção e a
lenta e dolorosa gestação de uma consciência dos trabalhadores, através
do sofrimento, da luta, e sobretudo a partir da experiência inenarrável
do massacre que os operários sofreram dos bate-paus da famigerada Guarda
Especial de Brasília nos acampamentos da empreiteira Pacheco Fernandes
(Dantas)”.
Os cinco
documentários biográficos realizador por Vladimir a um só tempo dialogam
com esta dupla vereda e a expandem no trânsito entre a memória pessoal e
a história artística e política do país. Há crescentemente um
autorretrato pelo outro na sequência: “O Homem de Areia” (1982), sobre o
escritor e político José Américo de Almeida; “O Evangelho Segundo
Teotônio” (1984), sobre o senador alagoano que se afastou do regime
militar e se fez voz forte pela redemocratização; “O Engenho de Zé Lins”
(2007), talvez de todos o mais intimista, em torno de um dos
romancistas essenciais do ciclo da cana de açúcar; “Cícero Dias, O
Compadre de Picasso” (2016); e, por fim, “Giocondo Dias – Ilustre
Clandestino”, um retrato carinhoso de um companheiro de viagem nas
batalhas do extinto PCB (Partido Comunista Brasileiro).
Haveria
tanto mais a destacar e agradecer. Vladimir Carvalho formou gerações de
cineastas que têm construído a vigorosa cinematografia brasiliense e
foi liderança de proa nas lutas sem trégua em favor de um cinema
brasileiro com bases menos fugidias. Herdou do pai o amor pela
xilogravura e foi sempre um estilista das letras em constante atividade,
como provam os três livros que nos legou (“O País de São Saruê”,
“Cinema Candango” e “Jornal de Cinema”).
Sempre
filmando, para além dos projetos da hora, lega-nos também um patrimônio
de imagens inéditas ainda a descobrir. Obsessivo na preservação da
história, Vladimir fundou em 1994 uma semente de cinemateca brasiliense
sob a forma da Cinememória, com um acervo de dimensão nacional a cujo
destino concentrou sua energia nesta década. Uma luz no fim do túnel o
animara em seus últimos dias com a parceria envolvendo entre outros o
Ministério da Cultura, o IPHAN, a Secretaria do Audiovisual, a
Cinemateca Brasileira, o Banco do Brasil e a Secretaria de Cultura do
Distrito Federal. A mais urgente homenagem a Vladimir Carvalho é
consolidar, em sede própria e orçamento estável, uma sólida Cinememória.
A
história do É Tudo Verdade é indissociável da generosidade pessoal e do
vigor artístico e intelectual de Vladimir. A própria fundação do
festival contou com sua inspiração e jamais será possível agradecer
suficientemente seu incentivo, pela iluminadora presença sob tantas
formas e em tantas edições. Fica-se órfão também de amigos