Por Amir Labaki
Pelo terceiro ano consecutivo, a Cinemateca
Brasileira apresenta desta quinta, dia 19, ao outro domingo, 29, um de
seus ciclos recentes mais inspirados, “50 Anos Depois”. Com curadoria do
cineasta Paulo Sacramento (O Prisioneiro da Grade de Ferro), é um
fascinante mergulho na produção cinematográfica brasileira e mundial
lançadas há exatamente meio século. A sessão ao ar livre de abertura é
diversão garantida, com a mais hilária comédia dirigida por Mel Brooks,
“O Jovem Frankenstein”.
Que país e mundo era aquele? No Brasil,
viviam-se os anos de chumbo da ditadura militar que completava uma
década com a sucessão do terceiro (Médici) ao quarto e penúltimo
general-presidente (Geisel). A vizinha Argentina acelerava sua descida
ao caos de sua própria noite dos generais com a morte em agosto do
novamente presidente Juan Domingo Perón.
Humilhado internamente pelo escândalo de
Watergate e externamente pela derrota iminente na cruel guerra do Vietnã
(ver no ciclo “Corações e Mentes”, de Peter Davis), Richard Nixon
renunciava em agosto à Presidência da República, sendo sucedido pelo
opaco Gerald Ford. Os melhores ventos sopraram mesmo de Portugal em
abril com a Revolução dos Cravos, que encerrou mais de meio século de
autoritarismo salazarista e selou de vez a libertação do jugo colonial
de países africanos como Moçambique e Guiné-Bissau.
Sob variadas formas, transição parece ser o
denominador comum do cinema que chegava às telas mundiais em 1974. Na
Europa, corriam em paralelo a cerimônia do adeus de inúmeros grandes
mestres consagrados sobretudo no pós-guerra e o apogeu na Alemanha do
mais longevo dos “cinemas novos” que romperam os cânones clássicos desde
os anos 1960.
Com seu penúltimo filme, “O Fantasma da
Liberdade”, Luis Buñuel retomava em nova sátira à burguesia a estrutura
episódica de seus primeiros filmes surrealistas. Em “Violência e
Paixão”, também sua penúltima obra, Luchino Visconti reencena de forma
claustrofóbica a colisão entre tradição e modernidade.
Por sua vez, Jacques Tati celebrava seu amor ao
circo em seu último longa-metragem, “Parada”. “Cenas de Um Casamento”
não tem esse caráter crepuscular para a obra de Ingmar Bergman, mas
certamente é a súmula de suas radiografias da experiência amorosa.
Se forças centrífugas já pulverizavam a
“nouvelle vague” francesa e os “angry young men” da “British New Wave”, o
trio central do “Novo Cinema Alemão” estava na ponta dos cascos em
1974. Em “O Medo Consome a Alma”, Rainer Werner Fassbinder injeta tensão
racial a um melodrama inspirado em Douglas Sirk. “O Enigma de Kasper
Hauser” cristalizou-se como um dos mais perturbadores dramas de Werner
Herzog. Já nenhum filme da fase inicial de Wim Wenders parece mais
delicado do “Alice nas Cidades”.
É uma Hollywood à beira da grande mutação a
representada em “50 Anos Depois”. Vivia-se a fronteira entre a nova onda
dos jovens independentes detonada no final dos 1960 e a era dos
blockbusters que teria no ano seguinte em “Tubarão” de Steven Spielberg.
Neste contexto destacaram-se “O Poderoso Chefão – Parte 2”, de Francis
Ford Coppola, “Alice Não Mora Mais Aqui”, de Martin Scorsese”,
“Chinatown”, o melhor Polanski não apenas do período americano, e “Uma
Mulher Sob Influência”, talvez a maior parceria entre John Cassavetes e
Gena Rowlands.
Duas originais vozes de cinematografias menos
conhecidas afirmavam-se. O iugoslavo Dusan Makavejev pedia passagem para
sua anarquia sensual com “Sweet Movie”, na sequência de seu
impressionante “W.R. – Mistérios do Organismo” (1971). Por sua vez,
ninguém menos que o iraniano Abbas Kiarostami estreava em
longas-metragens já em chave alta com “O Viajante”, combinando já, como
bem definiu o seu compatriota Ehsan Khoshbakht “realismo com a economia e
precisão do artista visual”.
E o cinema brasileiro? Um período transicional
também se atravessava, com a Embrafilme ganhando corpo e a produção da
comédia erótica se firmando na Boca do Lixo. O ciclo do Cinema Novo
esgotara-se, mas não o da produção de seus próceres, como comprovava
Joaquim Pedro de Andrade com a melhor tradução para as telas de Dalton
Trevisan em “Guerra Conjugal”.
Desde São Paulo, José Mojica Marins, Ozualdo
Candeias e Walter Hugo Khouri seguiam suas veredas personalíssimas
respectivamente com “Exorcismo Negro”, “Caçada Sangrenta” e “O Anjo da
Noite”. “Iracena, Uma Transa Amazônica”, de Jorge Bodanzky e Orlando
Senna, e “Triste Trópico”, de Arthur Omar, elevavam a novo patamar a
hibridização entre ficção e documentário. Com seu ensaio de arquivo
“Getúlio Vargas”, Ana Carolina estreava em longas-metragens, já
apontando como uma das principais revelações da década.
Há muito mais em “50 Anos Depois”, do
inesquecível balanço geracional “Nós Que Nos Amávamos Tanto”, de Ettore
Scola, ao popularíssimo soft pornô “Emmanuele”, de Just Jaeckin, como na
safra fecunda de 1974. Não foram tempos que justifiquem qualquer
nostalgia. Celebre-se, contudo, aquele refúgio de luzes bruxuleantes,
com tanta energia a nos embalar.