Por Amir Labaki
Há
muito devia-se um documentário a Grande Otelo (1915-1993) e “Othelo, O
Grande”, de Lucas H. Rossi dos Santos, responde à altura o desafio. Seu
maior triunfo é não se deter apenas no retrato biográfico. O filme vai
muito além de mergulhar nos arquivos para reconstituir a vida de
Sebastião Bernardes de Souza Prata e para destacar os momentos maiores
da obra de um dos atores essenciais do cinema brasileiro, o único homem
negro com lugar inconteste no topo de nosso Olimpo fílmico.
“Othelo,
O Grande” destaca-lhe a voz, estruturando-se a partir da edição de seus
depoimentos. É ele mesmo que nos conduz por sua trajetória pessoal e
profissional, expressando de forma aguda e crítica a revolta frente à
tradição racista nacional que sempre enfrentou. Não à toa, o único outro
testemunho incluído na narrativa é do também artista, pensador e
político negro Abdias do Nascimento (1914-2011), liderança pioneira e
desbravadora na afirmação das culturas afro-brasileiras em iniciativas
como a do Teatro Experimental do Negro, que fundou em 1944, para ficar
em apenas um exemplo.
Da
estreia em 1927 como “Pequeno Otelo” na Companhia Negra de Revistas em
São Paulo, que tinha como maestro ninguém menos que Pixinguinha
(1897-1973), à despedida do público no início dos anos 1990 como o “Seu
Eustáquio” da Escola de Professor Raimundo comandada por Chico Anysio
(1931-2012) na Rede Globo, cobre-se de maneira não simplesmente
cronológica o principal de sua carreira. Ei-lo como atração dos
espetáculos de revista do cassino da Urca, uma das estrelas centrais das
chanchadas, ator e autor no teatro, intérprete marcante (ainda que
raramente com o devido protagonismo) dos filmes brasileiros pós-Cinema
Novo, comediante televisivo.
“Os
papéis que você me vê representar e não tem nada ver comigo é que não
tem nada a ver comigo e não tem nada a ver com o negro brasileiro. Mas
eu preciso sobreviver”, frisa um nada ingênuo Grande Otelo.
Já
no princípio da fama no Cassino da Urca, onde negros entravam pelas
portas dos fundos, “começou uma coisa que na minha vida é uma constante:
a exploração”, testemunha. “A discriminação existe totalmente”.
Foi
numa saída de espetáculo na Urca que Grande Otelo cruzou brevemente com
Orson Welles (1915-1985), que iniciava a produção dos episódios
brasileiros do filme inacabado da política de Boa Vizinhança dos EUA com
a América Latina, “It’s All True” (É Tudo Verdade, 1942). Não tardou o
convite para protagonizar o capítulo carioca centrado no Carnaval.
“A
verdade é que Orson Welles sempre demonstrou para mim ser uma pessoa
preocupada com o mundo daquela época, 1942, em plena (Segunda) guerra”,
lembra Otelo. “Orson Welles fixou bastante o lado mais pobre,
marginalizado, do Brasil dentro do Rio de Janeiro: as favelas. E nas
favelas havia muitos negros. Foram escritas muitas cartas para os EUA
protestando contra o fato de o Orson Welles ter passado o dia e outro
dia e mais outro dia só filmando negros. E os EUA, com a mentalidade que
tem, sumiu com o filme”.
No
ano seguinte, com um melodrama largamente baseado em sua própria
biografia, “Moleque Tião” de José Carlos Burle, Grande Otelo iniciava na
nascente Atlântida o apogeu de sua carreira e popularidade, em pouco
mais de uma década de comédias musicais (Aviso aos Navegantes; Carnaval
Atlântida; Matar ou Correr). Ele louva a lua-de-mel com o público (“o
povo naquela época se encontrava mais na tela”), mas não deixa barato os
que o tratavam como “escada” em sua dupla com Oscarito (1906-1970). “A
Atlântida tinha dois símbolos: o chafariz e... Oscarito”, ironiza Otelo.
Não
faltam em “Othelo, o Grande” cenas de chanchadas de explícito racismo
por caricatura. Tampouco deixa-se de recuperar um dos momentos
inesquecíveis de Grande Otelo, o da morte de Passarinho em “Amei um
Bicheiro” (1953) de Jorge Ileli -um filme “noir” da Atlântida, sem
Oscarito.
“Achavam que eu
estava destruído depois do período das chanchadas”, relembra o ator. Ele
não esconde certo ressentimento por seu esquecimento pelo Cinema Novo,
que critica pelo “autorismo” que o teria afastado do público. Não deixa,
porém, de celebrar a combinação do movimento com a chanchada por
Joaquim Pedro de Andrade em “Macunaíma” (1969), elogiando-o também pela
forma precisa com que o dirigiu.
Alguns
dos maiores dele não prescindiram. À frente, Nelson Pereira dos Santos,
sobretudo em “Rio, Zona Norte” (1957), Júlio Bressane (A Família do
Barulho, 1970, O Rei do Baralho, 1974) e Rogerio Sganzerla (Nem Tudo É
Verdade, 1985, Tudo É Brasil, póstumo, 1997), Roberto Farias (Assalto ao
Trem Pagador, 1962) e Hector Babenco (Lúcio Flávio, O Passageiro da
Agonia, 1977), mesmo cinemanovistas como Cacá Diegues (Quilombo, 1984) e
Paulo César Saraceni (Natal da Portela, 1988). Para não falar de Werner
Herzog, em “Fitzcarraldo” (1982), com uma das melhores anedotas de
bastidores do documentário.
“Só
através do cinema o artista é perpetuado”, crava Grande Otelo,
reverenciando a arte capital do século 20. No caso dele, apesar dos
pesares bem fundamentados por Lucas H. Rossi dos Santos, é tudo verdade.