Por Amir Labaki
“Feito na
Inglaterra: Os Filmes de Powell e Pressburger”, disponível em streaming
pelo Mubi, é de todos o mais pessoal e profundo ensaio de Martin
Scorsese sobre a história do cinema. David Hinton assina a direção, mas é
Scorsese quem nos fala e conduz.
Durante
décadas a dupla formada pelos cineastas Michael Powell (1905-1990) e
Emeric Pressburger (1902-1988), parceiros sobretudo no período entre
1939 e 1957, desafiou o esquecimento pela popularidade do melodrama
musical “Os Sapatinhos Vermelhos” (1948), sobre uma bailarina (Moira
Shearer) dividida entre a arte e o amor. A revalorização da parceria
talvez tenha por grande marco a pesquisa realizada em 1999 pelo British
Film Institute (BFI) sobre os maiores filmes ingleses de todos os
tempos. “Os Sapatinhos Vermelhos” ficou em nono lugar e mais três de
suas produções ficaram entre os 100 mais votados: “Narciso Negro”
(1947), “Coronel Blimp: Vida e Morte” (1943) e “Neste Mundo e no Outro”
(1946).
O auge da reavaliação
do prestígio acontece agora, com a retrospectiva completa, incluindo
cópias restauradas, no BFI em Londres no ano passado e, claro, com
“Feito Na Inglaterra”. Seu principal motor é Scorsese. O documentário
resume sua devoção, iniciada curiosamente assistindo aos primeiros
filmes ainda quando menino em cópias preto e branco na televisão.
Na
mais recente pesquisa de maiores filmes da história pelo BFI, em 2022,
ele selecionou “Os Sapatinhos Vermelhos” (“o filme comercial subversivo
por excelência”) como seu décimo preferido. No documentário, Scorsese
diz pensar, sempre que lhe perguntam qual sua cena predileta da história
do cinema, no duelo de espadas numa gôndola no operístico “Contos de
Hoffmann” (1951). Depois da aposentadoria de Powell, a partir dos anos
1970, o vínculo entre os dois cineastas se tornou pessoal, com o mestre
britânico mudando-se para os EUA para assessorá-lo e casando-se com a
genial montadora de Scorsese, Thelma Schoonmaker.
“Ele
não foi apenas um apoio, mas um guia”, testemunha o diretor de
“Motorista de Táxi” (1976). “Me incentivando, dando confiança e me
mantendo ousado em meu próprio trabalho”.
É
fascinante acompanhar como Scorsese, um cineasta mais identificado com
uma tradição fílmica realista, detalha a influência da obra mais
marcadamente surreal, mágica e extravagante de Powell e Pressburger. Por
um lado, há o reconhecimento da inspiração por cenas específicas, como a
de outro duelo, em “Coronel Blimp”, e umas das lutas de boxes centrais
de “Touro Indomável” (1980).
Há,
frisa ele, sobretudo um parentesco maior, de ordem dramática, na
composição dos protagonistas. “Os filmes de Powell e Pressburger
geralmente lidam com personalidades egocêntricos, voláteis e
dependentes. Mas esses personagens falam comigo e pode ser óbvio que
muitos dos personagens que me atraem são influenciados pelos heróis de
Powell. Eles também são anti-heróis, pessoas destruídas e movidas por
conflitos”. Segue-se a citação de um carrossel de imagens de personagens
centrais na obra de Scorsese, do Travis Bickle de “Motorista de Táxi”
ao Sam Rothstein de “Cassino” (1995), do Bill Cutting (Daniel Day-Lewis)
de “Gangues de Nova York” (2002) a May Welland (Winona Ryder) de “A
Época da Inocência” (1993), entre outros.
Em
nenhum de seus três principais documentários anteriores sobre a
história do cinema, a série de três episódios de sua “Viagem Pessoal
pelo Cinema Americano” (1995), o mergulho sobretudo no neorrealismo de
“Minha Viagem à Itália” (1999) e a homenagem a Elia Kazan (Sindicato de
Ladrões; Vidas Amargas), de “Uma Carta Para Elia” (2010), Scorsese
dissecou tão minuciosamente a evolução das obras dos cineastas
abordados.
Com pouco mais de
duas horas de duração”, “Feito na Inglaterra” resume a vida de Powell e
Pressburger antes de estabelecerem a parceria em 1939, em “O Espião
Submarino”; detalha filme a filme a consagração da dupla sob o selo de
sua produtora “The Aschers”, com o auge no imediato pós-guerra; e
explica a perda de prestígio, o distanciamento e a ruptura
(profissional, e não pessoal) no final dos anos 1950. Powell ainda faria
um grande filme, maldito de saída, hoje cultuado, o thriller macabro e
cinefílico “A Tortura do Medo” (1960); Pressburger, nem isso.
Numa
entrevista, eles explicam a divisão de trabalho por trás da rara dupla
assinatura: Powell dirigia, Pressburger escrevia o roteiro, ambos
cuidavam da produção. Indo além de sua tradicional análise aplicando a
teoria do autor, Scorsese reverencia marcantes contribuições de outros
membros das equipes: atrizes como Moira Shearer e Deborah Kerr, o
designer de produção Alfred Junge, o diretor de arte Arthur Lawson, o
diretor de fotografia Jack Cardiff. Nada mais justo.
Enquanto
por aqui não temos como plenamente conferir, na devida tela grande, a
exuberância pictórica dessa filmografia definida por Scorsese como
“fonte constante de energia”, é possível assistir ao essencial da obra
de Powell e Pressburger em cópias em DVD ou Blu-Ray da Versátil e no
streaming Belas Artes À La Carte. Agora guiados pelos olhos de Scorsese,
é um raro privilégio.