Por Amir Labaki
Você deve
já ter visto ao menos um episódio de uma das séries ficcionais francesas de
maior sucesso recente, “Dix Pour Cent”, de Fanny Herrero, sobre uma agência de
atrizes e atores, que teve quatro temporadas lançadas desde a estreia em 2018
na Netflix. Mas será que já assistiu na mesma plataforma à série não-ficcional
gaulesa mais vista pelos franceses no ano passado, “A Cúmplice do Mal: Monique
Olivier”, em que Christophe Astruc e Michele Fines retratam a esposa do “serial
killer” Michel Fourniret (1942-2021), conhecido como o Ogro das Ardenas, que
matou 12 pessoas entre 1998 e 2003 na França e Bélgica?
Também
disponíveis pela Netflix no Brasil estão a segunda e a terceira séries
documentais francesas mais populares em 2023. “Tour de France: No Coração do
Pelotão” radiografa, em oito episódios, os desafios de algumas das principais
equipes que disputaram uma das mais tradicionais competições mundiais de
ciclismo em 2022 (uma nova temporada acabou de estrear retratando a de 2023).
Por sua vez, dirigida por Maxime Bonnet e Baptiste Etchegaray, “A Bilionária, O
Mordomo e o Namorado” devassa, em três partes, o conflito entre Liliane
Bettencourt (a herdeira do grupo L’Oreal) e sua filha Françoise em torno da
ligação da matriarca com o fotógrafo François-Marie Banier.
Essas três
produções ficaram entre as dez séries documentais mais vistas no streaming
francês no ano passado, respectivamente no 5º, 8º e 10º. posto. A líder de
visionamento é a série britânica “Fórmula 1: Dirigir Para Viver”, lançada em
2019 pela Netflix e já em sua sexta temporada. O domínio da Netflix espelha sua
liderança também quanto à oferta para o mercado francês, com mais de 1300
títulos (somadas séries e longas documentais), com quase o dobro da segunda
colocada (a também americana Prime Video) e pouco mais que o dobro da terceira
(a francesa myCanal/Canal + Series).
Segundo o
relatório sobre o mercado do cinema e do audiovisual documental na França
publicado no final do mês passado pelo Centro Nacional do Audiovisual e da
Imagem Animada (CNC), disponível online, a oferta de documentários pelas
plataformas pagas de streaming na França quase triplicou desde 2019. Nada menos
que 28% dos títulos são produções francesas. No segmento específico de séries
documentais, o predomínio é dos EUA, com pouco mais de 50% da oferta, seguido
por quase 20% de produções gaulesas.
Não se
doure a pílula: também na França, “as séries de ficção são o motor do
streaming”, com 66,7% das horas consumidas. A produção documental alcança 2,3%
do consumo total, sendo 71,7% por séries e 21,7% por documentários de
longa-metragem.
A retomada
pós-pandemia do público para longas documentais em salas tem sido lenta também
na França. Em 2023, estrearam 115 títulos nos cinemas (eram em média 133 entre
2017 e 2019), sendo 77,9% produções francesas. No total, foram alcançados 1,5
milhões de espectadores, apenas cerca de 1% dos ingressos vendidos no país.
Pré-Covid, o recorde da década havia sido alcançado em 2016, para um público
pagante de 3,3 milhões de espectadores. O resultado representa uma queda de
17,4% em relação a 2022, enquanto a frequentação total no país subiu 19,2% no
mesmo período.
Ainda
inédito no Brasil, o documentário mais visto na França no ano passado foi
“Guardiãs do Planeta”, um foco na vida das baleias dirigido por Jean-Albert
Lièvre e narrado por Jean Dujardin (O Artista). O filme vendeu 176.400
ingressos, com um público majoritário (39%) de idade superior a 50 anos. É um
resultado um pouco superior que a divisão etária total: maiores de 50 anos
representam 36,7% do público para documentários, com 28,2% para espectadores
com menos de 25 anos e 35,2% entre 25 e 49 anos.
Como sinal
do impacto positivo da participação em festivais, o segundo, o terceiro e o
sexto documentários mais vistos no ano passado estampavam premiações de peso
nos três principais eventos do calendário europeu. A coprodução
franco-germano-tunisiana “As 4 Filhas de Olfa”, de Kaouther Ben Hania,
disponível na Prime Video, foi um dos vencedores do Olho de Ouro de melhor
documentário de Cannes 2023 e conquistou ainda uma das cinco vagas de
finalistas ao Oscar da categoria. Por sua vez, o francês “No Adamant”, de
Nicolas Philibert, venceu o Urso de Ouro da Berlinale no ano passado. Já o
americano “Toda A Beleza e A Carnificina”, de Laura Poitras, ganhou o Leão de
Ouro em Veneza em 2022, recebendo também uma indicação ao Oscar.
Há
muito mais no balanço do CNC. Privilegiei o enfoque sobre o consumo mais
próximo de nossa experiência de espectadores brasileiros. Jamais por aqui
chegamos sequer próximos da participação na França da televisão aberta para o
mercado de documentários, tanto na produção quanto na difusão. Quanto aos
segmentos do estudo dedicados à produção, louve-se o constante avanço francês
na participação autoral de mulheres e preocupa o crescente incremento do
recurso ao faroeste da inteligência artificial. Em mais de um sentido, o
documentário vive hora de transição. Lá como cá.