Por Amir Labaki
Expandindo
a fórmula célebre de Ezra Pound, alguns raros críticos também são
“antenas” da experiência humana. Há mais de meio século um dos melhores
exemplos por aqui é Heloísa Teixeira, até o ano passado conhecida como
Heloísa Buarque de Hollanda.
Empossada
há pouco mais de um ano na Academia Brasileira de Letras, às vésperas
de completar 85 anos no final deste mês, o antigo namoro de Heloísa com o
cinema parece agora ter ficado firme. Ela está ao centro de vários
projetos em andamento de filmes e séries documentais, retornando mesmo à
cadeira de diretora que brevemente experimentou entre os anos 1970 e
1980 (Xarabovalha; Dr. Alceu). Um deles foi lançado na abertura no Rio
do É Tudo Verdade deste ano: “Um Filme Para Beatrice”, de Helena
Solberg, na qual Heloísa é uma das mais provocadoras entrevistadas pela
cineasta sua contemporânea sobre a condição das mulheres hoje.
Exibido
no Festival do Rio de 2023 e disponível já em streaming (Now/Claro),
“Helô” é seu primeiro retrato fílmico exclusivo. Dirigido por seu filho
Lula Buarque de Hollanda, experiente documentarista de filmes sobre
Gilberto Gil e Pierre Verger, entre outros, tem a sabedoria de
incorporar à narrativa esta dimensão familiar. Assume assim uma dimensão
autorreflexiva essencial à vida e obra da retratada.
A
própria Heloísa explicita o jogo, numa roda de conversa com a equipe do
filme, da qual participam a roteirista Isabel de Luca, a co-editora
Jordana Berg e Lula. Ela cobra maior presença em tela do diretor. “Ele
está filmando a mãe dele. Ele está fazendo um filme sobre ele. É claro”.
É
claro, é também isso, mas não principalmente assim. Explicitada esta
dimensão autobiográfica, “Helô” é um documentário sobre Heloísa pelas
lentes de Lula, contudo jamais hesita quanto ao foco essencial sobre sua
protagonista.
O
filme alterna-se entre os registros do cotidiano dela, incluído o
próprio processo de filmagem, e a reconstituição de sua trajetória, por
meio de entrevistas e arquivos privados e públicos. Eis a já
desconfortável aluna da elite carioca do Colégio Sion, a formação em
Letras Clássicas, o primeiro período acadêmico nos EUA. Eis a
companheira de viagem da primavera cultural (Cinema Novo, Arena,
Oficina e Opinião, Tropicalismo) entre o golpe (1964) e o AI-5 (1968), a
anfitriã da mítica festa de Réveillon que prenunciou no Rio a
efervescência de 1968, a pioneira organizadora da antologia hoje
clássica dos poetas da geração mimeógrafo ou marginal.
Eis
a reflexão sobre as “patrulhas ideológicas” no Brasil da abertura na
virada dos anos 1970 para os 80, a paixão pela arquitetura, o flerte
efêmero com o cinema, o segundo período americano e o “aggiornamento”
nos estudos de sociologia da cultura quanto as produções invisibilizadas
(afros, indígenas, femininas, queer) e a terceira onda feminista. Ei-la
a partir dos anos 1990 libertando-se do incômodo perfil universitário
tradicional, mergulhando na cultura urbana moderna das então “favelas”,
no violento fim de século 20 brasileiro, para fundar na UFRJ o
laboratório da Universidade das Quebradas, e já nos anos 2000,
reposicionando-se frente a “potência coletiva e horizontal” dos
feminismos de uma nova geração.
A
incessante auto-reinvenção de Heloísa alcançou novo patamar simbólico
há exatamente um ano ao rebatizar-se. Aposentou-se o velho nome,
“Heloísa Buarque de Hollanda”, adotado do primeiro marido, e
apresentou-se “Heloísa Teixeira”, a partir do sobrenome materno. “Uma
nova mulher. Sem marido, sem pai”, define-se.
É
como “meu último ato” que ela comenta sua eleição no ano passado como
apenas a décima mulher a adentrar a Academia Brasileira de Letras (ABL).
Oscila entre o irônico e o premonitório vê-la destacar entre seus
escritos prediletos o ensaio “A Roupa de Rachel: Um Estudo Sem
Importância”, sobre as peripécias para adaptar o figurino patriarcal do
fardão da ABL à primeira mulher eleita, a escritora cearense Rachel de
Queiroz (1910-2003), em 1977.
Indagada
por Jordana Berg quanto a que filme faria sobre si mesma, Heloísa
Teixeira adianta um valioso autorretrato da crítica quando vivida. “Eu
faria um filme sobre os outros. Sobre quem eu escuto, digamos. É neto, é
amigo, os quebradeiros. Mas não sobre o que eles pensam sobre mim. Eu
faria eles por eles mesmos”. Formaria um belo díptico com o tão amoroso
quanto arguto “Helô”.