Por Amir Labaki
Quando
Hollywood era Hollywood, isto é, no auge da era dos estúdios, grosso
modo dos anos 1930 aos 1960, Frank Capra (1897-1991) foi, por uma
década, imediatamente no pré-Segunda Guerra, um dos cineastas mais
conhecidos e reverenciados do mundo. Hoje é lembrado sobretudo por fiéis
espectadores natalinos de “A Felicidade Não Se Compra” (1946), uma
espécie de conto de fadas moderno sobre como um anjo revela a um suicida
(James Stewart) como seria pior um mundo sem sua presença.
Na
conclusão do valioso documentário “Frank Capra: Criador de Sonhos”
(2023), escrito e dirigido por Matthew Wells, o crítico e historiador de
cinema Sam Wasson argumenta que, nestes tempos de aguda instabilidade
nos ultrapolarizados EUA sob a sombra de um possível retorno à
Presidência de Donald Trump, acontece uma volta ao cinema de Capra,
cívico e edificante para muitos, populista e predicador, para outros
tantos. Recém-lançado para aluguel em diversas plataformas de streaming,
o filme de Wells ganhou por aqui uma tradução pouco feliz de seu
subtítulo. O original, “Mr. America”, define bem o foco político na
análise da filmografia do diretor de “A Mulher Faz O Homem” (1939),
intenção completamente perdida pelo genérico “Criador de Sonhos” da
versão nacional.
O
documentário reconstitui de forma cronológica a vida e a obra de Capra,
sem ceder à tradicional hagiografia que infesta o gênero. Imigrante aos
seis anos com os pais italianos da Sicília, teve de batalhar muito para
ascender ao Olimpo hollywoodiano. Sua sorte foi entrar para o cinema
ainda na aurora da edificação do sistema de estúdios, com ladeiras menos
íngremes a percorrer.
Antes de
debutar como diretor ainda na era silenciosa, Capra foi entre outras
coisas zelador, editor de filmes amadores e assistente de direção. Em
sua primeira década como cineasta, treinou a mão em quase todos os
gêneros mais populares, da comédia (O Homem Forte, 1926) a filmes de
ação (Submarino, 1928). O destino lhe sorriu ao se tornar, como diz
Wasson, “um diretor iniciante num estúdio iniciante”, a Columbia
Pictures, caindo nas graças de seu fundador e manda-chuva, Harry Cohn
(1891-1958).
Num
país em frangalhos pela Grande Depressão a partir da quebra da bolsa em
1929, Capra não demorou a desenvolver sua fórmula de entretenimento que
espelha o “Zeitgeist”. “Acho que ‘Loura e Sedutora’ (1931, com Jean
Harlow) e ‘Loucura Americana’ (1932, com Walter Huston) foram os filmes
em que comecei a tratar de questões sociais”, conta o próprio diretor.
Sua
consagração no topo de Hollywood veio, contudo, com uma pioneira
comédia romântica sobre o encontro entre uma milionária (Claudette
Colbert) e um pobretão (Clark Gable), sem grandes sinais da imensa crise
social americana. Sucesso de público de gatilho lento, “Aconteceu
Naquela Noite” (1934) tornou-se a primeira das raríssimas produções a
conquistar os cincos Oscars principais (filme, diretor, ator, atriz, e
roteiro adaptado). A Columbia se elevava, finalmente, à elite dos
estúdios, com Capra como o grande mestre da casa.
Até
seu afastamento para participar do esforço de guerra, Capra realizaria a
tetralogia que firmou seu mito como o grande moralista entre os
cineastas hollywoodianos. Talvez você conheça alguns dos títulos: “O
Galante Mr. Deeds” (1936, com Gary Cooper e Jean Arthur), “Do Mundo Nada
Se Leva” (1938, com James Stewart e Jean Arthur), “A Mulher Faz o
Homem” (com o mesmo par), “Adorável Vagabundo” (Gary Cooper e Barbara
Stanwyck).
Exibindo
notável controle rítmico, sem descuidar do humor em seus filmes com
“mensagem”, Capra seguiu nestas autênticas fábulas americanas a mesma
receita: um homem comum enfrenta o sistema, sejam estes políticos
corruptos, capitalistas inescrupulosos ou a mídia oportunista. O auge da
popularidade combinava-se com o ápice do prestígio, com a primeira capa
do semanário “Time” para um cineasta e mais dois Oscars de melhor
diretor, por “Mr. Deeds” e “Do Mundo Nada Se Leva”.
Nada
mais natural que o cineasta mais sintonizado com o pulso popular tenha
sido convocado para coordenar os filmes oficiais de propaganda para
convencer os americanos da inevitabilidade de engajamento dos EUA na
Segunda Guerra (1939-1945) – mesmo sendo Capra um Republicano (liberal,
algo que em Trumpland parece extinto) na era do Presidente Democrata
Franklin D. Roosevelt. Para compreender o papel essencial de Capra na
empreitada, recomendo assistir na Netflix tanto aos sete documentários
resultantes, na série “Why We Fight” (1942-1945), como aos três
episódios da excepcional “Five Came Back” (2017), rodada por Laurent
Bouzereau a partir do livro homônimo de Mark Harris.
Nenhum
dos entrevistados no documentário de Wells crava uma explicação para a
decadência de Capra finda a batalha contra os fascismos. A exceção é “A
Felicidade Não Se Compra”, no qual ele parece ter traduzido algo de seu
desencanto frente às atrocidades testemunhadas. O diretor que se gabava
do “nome acima do título” (como batizou sua autobiografia) retraiu-se
para um cineasta de filmes para estrelas (Katharine Hepburn e Spencer
Tracy, Bing Crosby, Frank Sinatra), até retirar-se em 1961 após “Dama
Por Um Dia”.
A
breve reconciliação pública a partir do lançamento em 1971 de suas
memórias (boas de ler, mas largamente imprecisas, inéditas em português)
foi insuficiente para minorar o estrago reputacional das declarações
preconceituosas e ressentidas do aposentado Capra contra judeus e
afro-americanos. Nas mais de três décadas desde sua morte, seu prestígio
jamais se recuperou.
É
pena, pois seu cinema teve mais picos do que vales e foi
invariavelmente humanista. Tanto pela “esperança”, como lembra a
historiadora Jeanine Basinger, quanto pela “diversão”, como defende o
diretor Alexander Payne (Sideways), não dá mesmo para abrir mão dos
filmes de Frank Capra.