Por Amir Labaki
A
29ª edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários
dedica, a partir da próxima semana, uma retrospectiva ao cineasta,
curador e ensaísta britânico Mark Cousins. Serão exibidos oito dos
principais títulos por ele realizados em pouco de mais duas décadas de
incansável produtividade. Em sua primeira visita ao Brasil, Cousins
participará da abertura em São Paulo da 21ª Conferência Internacional do
Documentário, no dia 9 na Cinemateca Brasileira, e de uma conversa
sobre sua obra, no dia 11 no Rio de Janeiro.
A
produção cinematográfica (e cinefílica) de Cousins, assim como seu
primeiro volume solo de referência (A História do Cinema, 512 págs,
Martins Fontes, 2019, esgotado), não são estranhos ao público
brasileiro, e em especial ao do É Tudo Verdade. Sua estreita relação com
o festival começou em 2008, com a apresentação do ciclo Dez
Documentários Que Mudaram o Mundo, com curadoria original dele para o
British Film Institute (BFI).
No
catálogo, o próprio Cousins explicava o desafio que buscou enfrentar:
“Quais filmes comprovadamente tiveram um impacto social, legislativo e
político na época em que foram lançados? Durante a seleção, deixei-me
levar pela indefinição do que é um filme e incluí até filmes para TV,
mas tomei a decisão de não cometer o pecado da maioria dos programadores
de documentários para festivais: o anglocentrismo”. Assim, foram
exibidos títulos como o francês “A Dor e A Piedade” (1969), de Marcel
Ophuls, o iraniano “Em Nome da Liberdade” (1980), de Hussein Torabi, e o
japonês “Minamata: A Vitória das Vítimas” (1972), de Noriaki
Tsuchimoto.
A
mostra estampava a original abordagem cosmopolita e inclusiva da
história do cinema, ficcional e de animação, experimental ou
documentário, que distingue sua obra fílmica e sua reflexão ensaística. A
onívora mente de Cousins parece ter visitado os arquivos de cinema de
todo mundo, desde a aurora dos filmes.
Esta
amplitude cinematográfica se faz demonstrar notadamente nas seguidas
produções de Cousins que inventariam, a partir de distintas abordagens,
as histórias dos cinemas.
A
primeira e mais impactante é a série televisiva em 15 capítulos “A
História do Cinema: Uma Odisséia” (2011), lançada em DVD esgotado pela
Europa Filmes e exibida pelo Canal Curta. Seguiram-se “Uma História de
Crianças e Filmes” (2013); o curta “Caro John Grierson: Um Pós-Escrito a
A História do Cinema” (rough cut, 2017), uma introdução à história do
documentário, disponível no site do BFI, germe de uma produção em
desenvolvimento; a série em 14 episódios “Woman Make Film: Um Novo Road
Movie Através do Cinema” (2019), exibido em streaming pelo É Tudo
Verdade em 2020; o longa-metragem “A História do Cinema: Uma Nova
Geração” (2021), uma continuação da primeira série com foco na produção
do século 21, que abriu o É Tudo Verdade 2022; e pode-se incluir seu
mais recente filme, “Cinema Tem Sido Meu Verdadeiro Amor: O Trabalho e
Os Tempos de Lynda Myles” (2023), um retrato da curadora e produtora
britânica que estreia no Brasil no festival deste ano.
É
possível destacar a inquietação das estratégias formais de Cousins
apenas nos detendo nesta vertente historiográfica de sua variada
cinematografia. Apenas “A História do Cinema” desenvolve-se por meio da
uma estrutura cronológica. Os demais títulos abraçam uma organização
associativa, seja por características estéticas, rimas temáticas e
parentescos audiovisuais.
Neste
grupo, como quase na totalidade de sua obra, Cousins se faz presente em
voz e em corpo, numa original autoria pela performance, como a
discutida em filmes de Agnès Varda, Eduardo Coutinho e Jean-Luc Godard,
entre outros, no livro de 2013 (Taurus, inédito por aqui) da crítica
brasileira baseada na Inglaterra Cecília Sayad. Escritor de mão cheia, o
cineasta britânico tem revigorado a escrita da narração em off dos
comentários, na esteira das criações de autores como Chris Marker, Pier
Paolo Pasolini e Martin Scorsese.
Os
textos de Cousins transitam dos estudos críticos aos diários e às
cartas, do histórico ao filosófico, do autobiográfico ao confessional.
Cimenta-os aos documentários sua própria voz, seu acento inimitável, seu
ritmo desapressado, sua irresistível cumplicidade.
A
obra documental de Cousins viaja para muito além desta predominante
produção mergulhada nas histórias dos cinemas. É assim que dois filmes
de seu documentarismo social não poderiam faltar à retrospectiva no
festival. “Eu Sou Belfast” (2015) celebra suas raízes norte-irlandesas
enquanto “Marcha Sobre Roma” (2022) examina a trágica experiência do
fascismo na Itália a partir da ascensão em 1922 de Benito Mussolini
(1883-1945), atentando para seus dramáticos ecos contemporâneos.
Na
conclusão de texto sobre a retrospectiva de 2008, Cousins apresenta uma
definição que serve de bússola para navegar por sua obra: “o
documentário é menos um gênero (subproduto) do cinema, do que algo como
uma megalópole cinematográfica, onde vários gêneros e linguagens do
filme convivem e interagem”. Não à toa em 2021 a Academia Europeia de
Cinema concedeu a ele um prêmio jamais antes atribuído, por “Innovative
Storytelling”, uma distinção que há não muito tempo pareceria mais
afeita a diretores de ficção. O batismo brasileiro de Mark Cousins tem o
privilégio de mapear em sua presença como tem ele expandido aquela
megalópole.