Por Amir Labaki
“A minha vida é
imagem”. Assim autodefiniu-se Thomaz Farkas (1924-2011) numa de suas
últimas entrevistas. O centenário de seu nascimento, a ser completado em
outubro, nos propiciará a oportunidade de melhor compreender seu imenso
legado em fotografia e cinema.
Sob
o selo “Viva Thomaz Farkas”, uma série de iniciativas revisitará sua
obra. Já anunciadas estão uma retrospectiva dos filmes por ele dirigidos
e um debate na 21ª Conferência Internacional do Documentário na
Cinemateca Brasileira, ambos no programa da 29ª edição do É Tudo Verdade
– Festival Internacional de Documentários, entre 3 e 14 do próximo mês,
e exposições na Galeria Luciana Brito e no Instituto Moreira Salles,
que preserva seu acervo fotográfico.
Thomaz
Farkas foi dos raros artistas a protagonizar dois momentos fundamentais
de artes distintas no Brasil do século 20. Ele foi um dos pioneiros e
mais originais criadores da moderna fotografia brasileira, a partir da
década de 1940, assim como liderou, nos anos 1960, um dos momentos
essenciais do desenvolvimento da produção do cinema documentário entre
nós, com o que passou para a história posteriormente como Caravana
Farkas, na formulação em 1997 de Eduardo Escorel, um dos colaboradores
pontuais da iniciativa, com seu primeiro documentário solo, o
curta-metragem “Visão de Juazeiro” (1970).
Há
uma notável coerência na defesa por Farkas da fotografia como “visão”
(“A realidade não está na fotografia”) e dos documentários, como os que
produziu e realizou, como “uma interpretação”. Suas incursões nas duas
artes apresentam, contudo, engajamentos pessoais distintos: em foto, o
autor individualíssimo, em cinema, o autor sobretudo produtor, com
apenas quatro títulos como diretor, e ainda assim, num caso, co-diretor.
“Com
sua expressiva fotografia”, escreveu o crítico Rubens Fernandes Junior,
“Farkas encontrou um caminho particular, quando elegeu o ângulo
insólito para romper com o procedimento tradicional de fotografar e para
desarticular os automatismos da visão”. É isso mais marcante na
primeira fase de sua obra, nos anos 1940 e 50, de enquadramentos
desconcertantes, preto e branco fortemente contrastado, cenários sempre
mutantes.
Sem transigir na
busca do ângulo surpreendente, me parece haver certa transição na foto
de Farkas, da provocação formal à ênfase humanista, a partir da série
sobre a construção e inauguração de Brasília (1959/1960), e, agora em
cores, das jornadas nordestinas. Certamente não por coincidência, foram
estas realizadas durante as viagens de pesquisa e de produção da série
de curtas documentais que originalmente intitulava-se “A Condição
Brasileira”.
Cumpre
distinguir duas etapas na realização de documentários que, nas palavras
de Farkas na mesma entrevista de 2007 a Mariluce Moura e Neldson
Marcolin, tinham “a idéia de mostrar o Brasil aos brasileiros” -naquela
era ainda da aurora da televisão. Na ressaca repressiva do golpe militar
de 1964, concretiza-se primeiro a tetralogia “Brasil Verdade” (1965),
formada por “Memória do Cangaço” de Paulo Gil Soares, “Nossa Escola de
Samba” de Manuel Horácio Giménez, “Subterrâneos do Futebol” de Maurice
Capovilla, e “Viramundo” de Geraldo Sarno.
Entre
principalmente 1967 e 1970, desenvolveu-se a segunda etapa, de estudos e
viagens de pesquisa e de produção (a “caravana”), em parceria estreita
sobretudo com os documentaristas Geraldo Sarno (1938-2022) e Sérgio
Muniz (1935-2023). Focada na cultura popular, em diversos estados do
Nordeste, a série resultante (39 títulos, nas contas de Farkas, mentor,
produtor e patrocinador) é um afresco do Brasil profundo ainda sem
paralelos, com abordagens fílmicas tão distintas quanto sua dezena de
diretores, sendo Sarno, Soares e Muniz os mais prolíficos.
Testemunho
maior da generosidade de Farkas: nenhum dos títulos de “A Condição
Brasileira” foi dirigido por ele. Thomaz Farkas realizou apenas dois
curtas e dois médias-metragens, sempre em torno de sua paixão por
manifestações de cultura popular: “Paraíso, Juarez” (1971), “Todomundo”
(1980), “Hermeto, Campeão” (1980) e “Pixinguinha e A Velha Guarda do
Samba” (1954-2006, codireção de Ricardo Dias). É um privilégio
devolvê-los à tela grande no modesto ciclo com que o É Tudo Verdade, em
parceria com a Cinemateca Brasileira, o celebra neste centenário.
Convivi
com Thomaz desde a comemoração de seus 70 anos durante minha primeira
gestão como diretor do MIS-SP. Seu carinho e seu estímulo aqueciam o
peito em sua presença tímida e constante durante a primeira década e
meia do É Tudo Verdade. Sua obra é uma bússola, fotos e filmes
documentando sua grandeza. Neste centenário o que a tantos vai nos
faltar é o porto seguro daquele abraço.