Por Amir Labaki
Em
12 de fevereiro passado completou-se meio século da expulsão e
deportação da já então agônica URSS do escritor e prêmio Nobel Aleksandr
Soljenítsin (1918-2008), o mais célebre dos dissidentes do regime
autoritário soviético e autor da descrição definitiva de seus campos de
detenção e trabalho, “Arquipélago Gulag” (1973). Quatro dias depois, num
cárcere no círculo polar ártico, nada distinto de alguns descritos em
“Gulag”, foi anunciada a morte, sem causas reveladas, de Alexei Navalny
(1976-2024) o mais popular opositor do autocrata russo Vladimir Putin.
O
trauma foi planetário, mas seria inexato dizer que houve surpresa, dada
a tradição contemporânea de silenciamento fatal das lideranças
anti-Putin, como a jornalista Anna Politkovskaia (1958-2006) e o
político Boris Nemtsov (1958-2016). O trágico destino de Navalny cumpriu
assim outra crônica de uma morte anunciada, como se prenunciava na
sequência de abertura do retrato documental por ele protagonizado para o
cineasta Daniel Rohrer, lançado no Brasil pelo É Tudo Verdade de 2022 e
vencedor do Oscar de documentário de longa-metragem no ano passado.
Roher
abre o filme, disponível no MAX (ex-HBO), perguntando: “Se você for
morto, se isso acabar acontecendo, que mensagem vai deixar para o povo
russo”? “Me poupe, Daniel”, responde Navalny. “Não. Nem pensar. Parece
que está fazendo um filme caso eu morra. De novo, estou pronto para
responder à sua pergunta, mas, por favor, faça um filme diferente. Filme
número 2. Vamos fazer um thriller (e não “trailer”, como traduz
erroneamente a legenda - AL) desse filme e, se eu for morto, vamos fazer
um filme chato in memorian”.
E
como thriller “Navalny” chegou originalmente às telas. Eis o início da
militância crítica dele ao regime de Putin, suas denúncias de corrupção
contra sua cleptocracia, as primeiras prisões, a tentativa de
assassinato por envenenamento durante um voo em 2020, sua lenta e
dolorosa recuperação na Alemanha, o desmascaramento dos agentes russos
responsáveis pelo atentado, e seu retorno à Rússia em janeiro de 2021,
para a inevitável detenção, ainda no aeroporto, que tragicamente se
confirmaria final -e fatal.
Durante
a sucessão de endereços prisionais a que foi submetido durante seus
dois últimos anos, constantemente em regime de solitária, Navalny
desafiou o impacto da progressiva deterioração de sua saúde com o
contrabando de mensagens reflexivas e bem-humoradas postadas on-line, em
geral em sua conta no X (o antigo Twitter). A leitura foi seu
derradeiro oásis de sanidade. Inicialmente, foi limitado aos clássicos
russos: Dostoiévski, Tchekhov, Tolstói. Numa correspondência do cárcere,
provocou: “Quem poderia ter me dito que Tchékov é o mais depressivo
escritor russo”?
Aos
poucos, Navalny conseguiu expandir seu cardápio literário, mergulhando
principalmente em biografias e memórias políticas. Foi a leitura do
“great, fantastic book” “Believer: My Forty Years in Politics” (Penguin
Books, 2015, inédito por aqui), de David Axelrod, comentarista político
da CNN e ex-estrategista eleitoral e depois conselheiro sênior de Barack
Obama na Casa Branca, que lhe despertou a curiosidade por uma
personalidade histórica: Robert Fitzgerald Kennedy (1925-1968).
Numa
carta revelada apenas postumamente à sétima filha de Bobby, a advogada
Kerry Kennedy, Navalny descreveu sua tardia descoberta e admiração pelo
ex-procurador geral da Presidência do irmão JFK (1917-1963). RFK acabava
de firmar-se como virtual candidato do Partido Democrata à sucessão de
Lyndon B. Johnson (1908-1973) quando foi assassinado em junho de 1968 em
Los Angeles.
“Infelizmente,
na Rússia sabemos muito pouco sobre ele”, contou Navalny. O fascínio
descrito por Axelrod ao testemunhar, “aos 5 ou 6 (anos)”, um apoteótico
comício novaiorquino da candidatura presidencial de Bobby, convenceu o
dissidente russo que “deveria saber mais”. Um amigo lhe indicou a
leitura da biografia “Bobby Kennedy: The Making of A Liberal Icon”
(Randon House, 2015, também inédito aqui), de Larry Tye.
“Do
meu ponto de vista o livro é fantástico (...) Honestamente, chorei duas
ou três vezes durante a leitura! (Mas por favor não conte a ninguém)”,
confessou Navalny. “O que é mais importante, a história de seu pai
revelou para mim a chave para entender duas coisas: os problemas raciais
e as lutas pelos direitos civis nos anos 1960 e o que está acontecendo
na América agora. (...) Tudo está enraizados nos anos 60”.
É
especialmente revelador o único senão dele quanto ao livro: “Acho,
contudo, a linha principal – sobre a evolução de RFK da Comissão
(Joseph) McCarthy a campeão dos direitos civis- um pouco rebuscada”. O
ponto cego da leitura de Navalny evita-lhe reconhecer uma das
características comuns entre sua trajetória e a de Bobby: ambos se
vincularam inicialmente à direita do espectro político antes de
marcantes conversões para posições progressistas.
Um
nos EUA dilacerados pela guerra do Vietnã e por batalhas antirracistas,
o outro na Rússia autoritária e militarizada de Putin, ambos portavam o
rosto da esperança quando brutalmente foram eliminados de cena. Para
compreender o paralelo, recomendo complementar uma sessão de “Navalny”
com a série documental “Bobby Kennedy Para Presidente” (Netflix, 2018),
de Dawn Porter.
Fechando
um trágico círculo, uma das releituras do líder russo na prisão foi “Um
Dia na Vida de Ivan Deníssovitch” (1962), a pioneira novela de
Soljenítsin sobre o cotidiano que padeceu nos campos repressivos
soviéticos. Tomara não demore demais novo degelo russo para abrandar o
luto com a leitura da verdadeira história do último dia do bravo Alexei
Navalny.