Por Amir Labaki
Os
fãs de Rock Hudson (1925-1985) nem precisaram esperar até seu
centenário de nascimento para assistir à biografia em documentário.
Lançado no Festival de Cinema de Tribeca (EUA) em meados do ano passado,
já é possível alugar ou comprar em streaming (Apple TV, Now) “Rock
Hudson: All That Heaven Allowed” (Rock Hudson: tudo que o céu permitiu),
intitulado pelo diretor Stephen Kijak com uma piscadela para um dos
melodramas estrelados por ele para Douglas Sirk na década de 1950.
Entre
as novas gerações não deve ser imediata a identificação de um dos galãs
mais populares da Hollywood de meados do século passado. Eu mesmo o vi
pela primeira vez como protagonista de uma esquecida série de TV do
início dos anos 1970, “O Casal McMillan” (1971-1977), um policial
semanal coestrelado pela ainda mais esquecida Susan Saint James. Passado
o ápice de sua carreira cinematográfica, Hudson reconquistou parte da
fama no fim de sua carreira numa série televisiva de maior popularidade,
a constrangedora “Dinastia” (1981-1989). sobre amores e vilanias entre a
elite da América profunda.
Rock
Hudson despediu-se de forma trágica, como talvez a primeira celebridade
a ser fatalmente vitimada em consequência da Aids. Sua homossexualidade
era um segredo de polichinelo, mas ainda desconhecida pelo grande
público, pois o ator jamais saíra do armário, como Paulo Francis
comentou em sua coluna na Folha em fins de julho de 1985, quando o
declínio final de sua saúde ganhou manchetes.
Stephen
Kijak foca seu documentário sobre esta vida privada sigilosa de Hudson,
deixando em segundo plano um exame mais minucioso de sua carreira nas
telas. Os títulos principais estão lá, das dissecações melodramáticas da
“Americana” por Sirk às comédias deliciosas ao lado de Doris Day
(Confidências À Meia-Noite, 1959), passando pela isolada indicação ao
Oscar por “Assim Caminha a Humanidade” (1956). Mas, revisitando a sacada
de Mark Rappaport no ensaístico “Os Filmes Privados de Rock Hudson”
(1992), a filmografia do ator serve sobretudo como um arsenal de cenas a
ilustrar, recontextualizadas, os comentários e as anedotas sobre a face
oculta de seu cotidiano.
O
jogo infelizmente se torna, primeiro, redundante pelo excesso, perdendo
força em esticados 105 minutos; segundo, eticamente complicado, em
ocasionais edições internas de sequências originais, as alterando por
exemplo para incluir Hudson num pedido de casamento entre outros
personagens, tornando gay uma cena hétero; terceiro, limitadora, pois a
discussão sobre a opção sexual ofusca uma visão geral das opções de
carreira e do talento do intérprete de “Palavras ao Vento” (1956).
Este
último ponto é o que levou Peter Debruge, na resenha para a Variety, a
considerar o filme é “um desserviço a ele, reduzindo a carreira de
Hudson -da forma exata que ele foi tão longe para evitar- à dimensão de
sua sexualidade”. Não assino embaixo, mas compreendo o ponto.
Discuta-se
a ênfase, mas se reconheça a organicidade na construção por Kijak de
“All That Heaven Allowed”. Complementando os depoimentos sobretudo de
arquivo, sucedem-se entrevistas inéditas com homens que transaram com
Hudson, em relacionamentos pontuais ou duradouros. Algumas delas,
explícitas até a anatomia.
A
desconstrução de Rock Hudson atinge outra dimensão na análise da usina
americana de sonhos. “De certo modo, Rock é a mais bem sucedida criação
da era de ouro de Hollywood”, argumenta Robert Hofler, biógrafo de Henry
Willson (1911-1978), o agente que o colocou no mapa. “A última daquelas
estrelas fabricadas em que todos os aspectos do que pensamos ser sua
vida privada foi construída por outras pessoas”.
Da
adoção do nome artístico à escolha da esposa de fachada (Phyllis Gates,
ex-secretária de Willson), dos papéis de conquistador às noitadas
promocionais com “starlets” para a imprensa de fofocas, disseca-se como
Ray Harold Scherer Jr. a um só tempo se reinventou e foi reinventado
para consumo como galã hollywoodiano. Um ator, dentro e fora das telas.
Afinal,
quão talentoso era ele? Um filme algo esquecido, “O Segundo Rosto”
(Seconds, 1966) de John Frankenheimer, decide a parada. Hudson
interpreta um homem de finanças novaiorquino que forja a própria morte e
se submete a uma operação plástica radical para recomeçar tudo sob uma
nova identidade.
O
documentário traz uma leitura metafórica a partir da mesma lente da
homossexualidade. Coerente, mas restritiva. “O Segundo Rosto” é uma
parábola desconcertante sobre o mal-estar existencial da América no auge
da Guerra Fria. Um mero queridinho das matinês nada teria a fazer ali.