Por Amir Labaki
Há
55 anos o ano que não acabou terminava antecipadamente, ao menos por
aqui, no dia 13 de dezembri, com a promulgação do Ato Institucional
Número 5, o AI-5, que fechava de vez a ditadura militar instaurada em 31
de março de 1964. Não haveria melhor oportunidade para lançar nos
cinemas “A Portas Fechadas”, documentário de arquivo do estreante João
Pedro Bim, exibido durante o ano em festivais brasileiros (Olhar de
Cinema; Mostra de Cinema de São Paulo) e internacionais (IDFA, Havana).
Só que não.
O
filme tem ao centro a gravação sonora da “missa negra” (Elio Gaspari)
da sessão do Conselho de Segurança Nacional (CSN) que, como não poderia
deixar de fazer, sacramentou o ato apresentado pelo marechal-presidente
Arthur da Costa e Silva (1899-1969). Entre outras medidas de
escancaramento do arbítrio, fechava-se o Congresso Nacional, reabria-se a
temporada de cassações de mandatos e de suspensão de direitos
políticos, rasgava-se o direito à garantia ao “habeas corpus”.
Cinema
é imagem e som. Documentaram-se apenas as vozes e o ruído ambiente. O
primeiro e maior desafio para “A Portas Fechadas” era, portanto,
articular imagens que a um só tempo complementassem e comentassem o
ouvido.
A
sacada de Bim foi a de mergulhar no acervo audiovisual produzido pelo
próprio regime militar. São essencialmente dois tipos de material de
arquivo cinematográfico: cinejornais da Agência Nacional e filmes de
campanhas publicitárias da ditadura. Estes últimos revisitam propagandas
também utilizadas recentemente em “Os Arrependidos” (2021),
documentário de Armando Antenore e Ricardo Calil que venceu o É Tudo
Verdade há dois anos ao recuperar a exploração política pelo regime
militar do depoimento de ex-militantes da luta contra o autoritarismo.
Em
“A Portas Fechadas”, os cinejornais e as propagandas cumprem o duplo
papel de reconstituir, principalmente da Presidência Costa e Silva
(1967-1969) à Geisel (1974-1979), o discurso oficial, marcial e
autoritário, patrioteiro e reacionário, racista e antiecológico, e
contextualizar a identidade de personagens da reunião, como o
vice-presidente Pedro Aleixo (um civil), ministros como Delfim Neto
(Fazenda) e Jarbas Passarinho (Trabalho e Previdência Social), e o então
chefe do SNI (e futuro general-presidente), Emílio Garrastazu Médici.
O
documentário abre mão de narração em off, recorrendo pontualmente a
cartelas explicativas. Os materiais de arquivo, tanto sonoros quanto
audiovisuais, são reeditados e alterados por recursos como congelamento e
repetição. As manifestações de membros do CSN, nem todas selecionadas
para o filme, são sintetizadas e reordenadas por fins dramáticos pelo
roteiro e edição.
Externando
preocupação com a violência anticonstitucional, o ex-udenista Pedro
Aleixo foi a voz dissonante, defendendo a adoção de um estado de sítio
em lugar do Ato proposto. O ministro da Marinha (e futuro
vice-presidente), almirante Augusto Rademaker, expressou sua absoluta
discordância com o então vice-presidente, aplaudiu o texto e retrucou
que o que se tinha “que fazer é realmente uma repressão”.
Três
das personalidades que mais se identificaram com o regime militar
engrossaram o coro. Delfim Neto considerou que “a proposição (...) não é
suficiente”. Médici lembrou que em reunião anterior propusera um ato
similar. Passarinho declarou: “às favas, senhor presidente, neste
momento, com os escrúpulos de consciência” quanto a “enveredar pelo
caminho da ditadura pura e simples”.
Se
os trechos audiovisuais selecionados parecem por vezes insuficientes
para ilustrar os personagens e suas áreas de atuação, o conjunto recria
com sucesso a atmosfera sinistra do país sob regime militar. Eis a
imagem de Nossa Senhora de Aparecida e o catavento verde e amarelo. Eis a
animação tosca afirmando que “somos todos por um”, com imagens do
“índio (sic), mulato (sic) e branco” e o cinejornal com escavadeiras
devastando a floresta amazônica, para “a dissipação do inferno verde”
com a construção da Transamazônica. Eis a sacralização da carta de Pero
Vaz de Caminha e as filmagens da Operação Carajás, “o maior exercício do
gênero já realizado”, com o treino militar antiguerrilha na região do
Araguaia.
Slogans
se sucedem: “O Brasil cresce primeiro dentro da família”. “A sua
tranquilidade está em boas mãos”. “E fez-se a ordem”. “Ontem, hoje,
sempre, Brasil”. “Este é um país que vai pra frente”. Deu no que deu.
PS. Se perdoam mais um: Boas Festas!