Por Amir Labaki
Para
o legado de Orson Welles (1915-1985), num ano sem efemérides redondas
em torno de seu nome, 2023 encerra-se com um balanço de rara fertilidade
quanto a atividades em torno de sua obra -e de sua vida. Tesouros de
arquivos não param de vir à tona; novos filmes, principalmente
documentários, mas também animações, não cessam de espocar; e peças de
teatro com Welles ao centro já dariam um festival. Se ao contrário da
lenda o diretor de “Cidadão Kane” (1941) foi industrioso, uma autêntica
indústria Welles está a pleno favor.
A
principal notícia envolvendo sua atribulada visita ao Brasil em 1942,
para rodar o inacabado “É Tudo Verdade” (It’s All True), foi anunciada
em junho pela especialista Catherine L. Benamou. A Paramount Pictures
iniciou o processo de escaneamento e digitalização que garante
finalmente a preservação dos negativos em nitrato dos três episódios
previstos para o filme: o mexicano “Meu Amigo Bonito” e os brasileiros
“Carnaval” e “Quatro Homens numa Jangada”. As filmagens realizadas em
Ouro Preto em março daquele ano, durante a rodagem principal no Rio de
Janeiro e em Fortaleza, exibidas pela primeira vez no país durante a
palestra de Benamou no encontro Visible Evidence organizado pela
Cinemateca Brasileira e pelo É Tudo Verdade em 2006, farão parte do
documentário em produção “Orson Welles no País do Silêncio”, de Laura
Godoy e Marcella Jacques.
Outra
preciosidade arquivística inspira mais um documentário em andamento,
“Masquerade Is Over”, do italiano Emiliano Campagnola. Num artigo
publicado no site Wellesnet em outubro, Campagnola não dá detalhes sobre
como descobriu um roteiro inédito de Welles, “baseado num tema de
Pirandello”, extraído da peça “Henrique IV”. Segundo o resumo, a trama
gira em torno do encontro entre uma jovem e o enlouquecido “imperador”
americano de uma ilhota italiana.
Campagnola
lembra a rara referência ao projeto no clássico livro de entrevistas de
Peter Bogdanovich (1939-2022) com Welles (Este É Orson Welles, Editora
Globo, 1995, esgotado). Sem citar o título, Welles recordou: “Dediquei
meses a isto. Se quisesse que um roteiro meu fosse publicado, seria
este. Era uma recriação completa em torno do tema de Pirandello – não se
tratava de uma versão fílmica da peça”.
Um
mistério deve ser resolvido apenas com a estreia do documentário de
Campagnola. Como conta o maior biógrafo de Welles, Simon Callow, no
terceiro volume de seu estudo magistral (One Man Band, Jonathan Cape,
2015, ainda inédito por aqui), “Masquerade” foi o título inicial do
thriller “Grilhões do Passado” (Mr. Arkadin, 1955), inspirado por um dos
episódios (Greek Meets Greek) da série radiofônica “The Adventures of
Harry Lime” estrelados por Welles na BBC do início da década de 1950.
Welles teria apenas pensado em reaproveitar o título de outra produção
cancelada? A resposta não tarda.
Até
em filme de animação Welles deve logo voltar às telas. Inspirado pela
franquia Transformers, mas sem qualquer vínculo com sua produtora
Hasbro, Jared Egol realiza de forma independente “Planet Welles”, sobre
os últimos dias do cineasta em Hollywood. Parece menos bizarro quando
lembramos que uma das últimas participações cinematográficas de Welles
foi na dublagem do personagem Unicron da animação “Transformers” (1986),
de Nelson Shin.
Mais ou
menos na mesma época, precisamente no dia do último aniversário
celebrado em vida por Welles (7 de maio de 1985), o dramaturgo e
acadêmico Richard France situou “Obediently Yours, Orson Welles”, que
participou em meados do ano do Serrate Verde Festival em Tbilisi, na
Geórgia. Ao centro do entrecho, Welles inventaria o passado enquanto
espera o apoio de Steven Spielberg para finalizar seu inacabado “Don
Quixote”.
Por sua vez, há
duas semanas o Bartell Theatre em Madison, no Estado de Wiscosin,
recebeu a première de “Orson Welles Presents: An Evening with Nixon”,
escrito por Finn Gallagher e Nathaniel Klein. Não se trata, vale frisar,
de uma remontagem da peça quase homônima de Gore Vidal de 1972,
demolidora do então presidente dos EUA ainda antes da eclosão do
escândalo de Watergate. Gallagher e Klein colocam em cena um duelo
verbal, também em 1985, entre Welles e Nixon, durante um show de mágica
protagonizado pelo primeiro.
Para
compreender a fundo a trajetória final de Orson Welles teremos de
esperar ainda provavelmente mais um ano pelo quarto e último volume da
biografia escrita por Simon Callow, cobrindo o período entre 1965 e
1985. “Duas décadas de certa forma fantasmagóricas”, adiantou Callow a
Wellesnet, “cheias de sonhos e esperanças e planos e fragmentos e
sugestões”. Pois é: como uma sessão de “Cidadão Kane”.