Por Amir Labaki
Com abertura na próxima
quarta-feira (3), a 75ª edição do Festival de Cinema de Locarno, na
Suiça, celebra com seu Leopardo pela carreira o cineasta franco-grego
Costa-Gavras, aos 89 anos. A mostra suíça soma-se assim a inúmeros
festivais internacionais na homenagem a um realizador que se tornou
sinônimo de cinema político, não sem ele pagar por algum tempo alto
preço.
A gangorra do prestígio se
elevou em seu favor decisivamente apenas neste século, apesar do impacto
e do reconhecimento algo precoce a seu terceiro longa-metragem, “Z”
(1969), Oscar de filme estrangeiro e dupla premiação em Cannes, e, já
nos anos 1980, a “Desaparecido: Um Grande Mistério” (1982), Palma de
Ouro no festival francês e prêmio de melhor roteiro pela Academia. Um
preconceito corrente em parte da crítica o classificava como um artesão
de esquemáticos dramas engajados. A direita o rechaçava como
filo-comunista, por filmes abertamente críticos a regimes autoritários,
como “Z” e “Estado de Sítio” (1972). A esquerda ortodoxa o condenava
pela denúncia do stalinismo tchecoslovaco de “A Confissão” (1970).
Progressista sem carteirinha,
humanista radical, Costa-Gavras começou a ver a onda virar com o
pioneiro prêmio pela carreira atribuído em 1995 pelo festival
internacional de cinema da organização de direitos humanos Human Rights
Watch. Iniciado o novo século, seguiram-se os reconhecimentos, da
Berlinale (2002) a Veneza (2019), passando por Pusan (2009) e Bombaim
(2013), entre vários.
A amplitude planetária dessas
homenagens reflete, de um lado, a excelência de suas narrativas
cinematográficas e, por outro, o internacionalismo de sua obra. Radicado
na França desde o início dos anos 1950, formado em cinema em 1959 pelo
então Idhec (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos), Costa-Gavras
fez filmes sobre a Resistência francesa (Tropa de Choque: Um Homem a
Mais e Sessão Especial da Justiça) e a polêmica atuação do Papa Pio XII
frente às denúncias do extermínio nazista de judeus (Amém); sobre a
opressão aos palestinos pelos radicais de Israel (Hanna K.) e a tortura e
o desaparecimento de opositores pelas ditaduras sul-americanas da
década de 1970 (Estado de Sítio e Desaparecido).
Na grande tela de Costa-Gavras,
denunciou nos EUA os suprematistas brancos (Atraiçoados) e a mídia
sensacionalista (O Qiuarto Poder), enquanto o Brasil aparece como um dos
centros de tortura supervisionados pelo agente americano Philip
Santore, a versão ficcional de Dan Mitrione (1920-1970) interpretada por
Yves Montand em “Estado de Sítio”. Na virada do século, quase ganhamos
um thriller todo nosso.
“Pensei num filme sobre Dom Hélder
Câmara (1909-1999), ‘o bispo vermelho’ brasileiro”, contou Costa-Gavras
em suas memórias (Va oú il est impossible d’aller, Seuil, 2017,
inéditas por aqui). “Encontrei com ele em Paris, numa reunião
internacional organizada pelo presidente (François) Mitterrand. (...)
Dom Helder Câmara dizia: ‘Quando dou alimento aos pobres, me chamam de
santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de
comunista’”.
É simbólico que o cineasta tenha
emprestado para título de suas memórias uma frase de um dos principais
escritores gregos do século 20, o romancista e poeta Nikos Kazantzákis
(1883-1957). “Na Grécia”, explica no livro, “em razão dos engajamentos
políticos de meu paí durante a ocupação alemã (na resistência comunista
durante a Segunda Guerra - AL), eu fui excluído do sistema
universitário”. Com pouco mais que 18 anos, Konstantinos (Costa é o
diminutivo) rumou para Paris, onde estudou Letras até ser fisgado pelo
cinema na Cinémathèque de Henri Langlois. O Idhec o formou, a
assistência de direção (Allegret, Clement) rapidamente o
profissionalizou.
Suas memórias se iniciam com sua
mudança para a França e seu país natal ressurge apenas pontualmente, em
breves lembranças familiares e em raras visitas posteriores. Não
surpreende, assim, que apenas dois de seus filmes mergulhem na história
da Grécia -ambos inspirados em episódios reais. “Z” denuncia a
manipulação oficial, pela ditadura militar grega, do assassinato de um
líder oposicionista, enquanto “Jogo do Poder”, sua mais recente produção
(2019), dramatiza o insucesso do ministro das finanças, Yanis
Varoufakis, nas negociações com a “troika” europeia de um acordo menos
ortodoxo para a crise da dívida grega em 2015.
Meio século os separa, mas se
mantém a estrutura característica dos thrillers de Costa-Gavras,
retratando a intersecção entre vidas comuns e a História com “h”
maiúsculo. Sua obra venceu com vigor o pedágio do tempo e tem em filmes
de exceção alguns de seus pontos altos, como o policial de estreia,
“Crime no Carro Dormitório” (1965), e o drama romântico “Um Homem, Uma
Mulher, Uma Noite” (1979). O lema de Kazantzákis não poderia conhecer
mais bela execução.