Por Amir Labaki
A pujante disputa entre os documentários é uma das poucas
certezas da 94ª cerimônia de entrega do Oscar. Agendada para 27 de
março, a premiação pode ter seu formato mais uma vez alterado pela
Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood diante do
cruel impacto da nova onda da pandemia de covid-19. Oficialmente, num
gesto otimista de reafirmação, já se anunciou o retorno de um mestre de
cerimônias e a volta à sede no Dolby Theatre em Los Angeles.
Em pouco mais de duas semanas, 8 de fevereiro, serão conhecidos os
indicados deste ano. Não será surpresa se a lista de documentários for
mais robusta do que a disputa entre as ficções. É especialmente
interessante a relação de quinze títulos documentais que se tornaram
semifinalistas em 21 de dezembro último.
Dois dos destaques do É Tudo Verdade mais uma vez avançaram na
disputa. Estão entre os quinze o vencedor da competição de
longas-metragens internacionais, “Presidente” (President), da
dinamarquesa Camilla Nielsson, e o filme de abertura, “Fuga” (Flee), do
também dinamarquês Jonas Poher Rasmussen. “Fuga” também emplacou uma
vaga entre os dez semifinalistas na categoria de melhor filme
internacional e não será surpresa se arrebatar também uma das indicações
a melhor longa-metragem de animação.
Nenhum exagero. A cruelmente patética retirada no ano passado das
tropas americanas do Afeganistão, com o retorno ao poder do Talibã,
apenas tornou ainda mais urgente a delicada reconstituição, como
documentário animado, da luta do jovem Amin (nome fictício) para fugir
do país tomado pela sanha extremista islâmica no final dos anos 1980.
O filme de Rasmussen pode ser o concorrente formalmente mais
heterodoxo, mas “The Velvet Underground”, a estreia em documentários de
Todd Haynes (Não Estou Lá; Carol), ombreia-o em inventividade ao
mimetizar o estilo libertário do cenário cultural da vanguarda
norte-americana dos anos 1960, de Andy Warhol a Jonas Mekas, para
contextualizar a história da mítica banda de rock formada por Lou Reed e
John Cale. Falando em documentários musicais, também notável, ainda que
mais convencional em sua edição do material de arquivo, é a
reconstituição por Quest Love dos festivais de música negra que agitaram
o Harlem nova-iorquino em 1969 em “Summer of Soul (...Or When the
Revolution Could Not Be Televised)”.
RJ Cutler tampouco decepciona em seu registro intimista da
eclosão de um novíssimo fenômeno pop em “Billie Eilish; The World’s A
Little Blurry”. Saindo da esfera musical, mas ainda dentro dos retratos
culturais, Julie Cohen e Betsy West iluminam em “Julia” a aurora do
casamento entre televisão e gastronomia com um sensível retrato de Julia
Child (1912-2004), a popularíssima escritora e apresentadora que
introduziu a culinária francesa aos lares norte-americanos.
Como consequência da salutar cosmopolitização recente do grupo de
votantes do subcomitê de documentários da Academia, preponderam entre os
semifinalistas documentários em torno de histórias internacionais. Além
de “Fuga” e de “Presidente”, sobre as eleições presidenciais de 2018 no
Zimbábue, “Ascension”, de Jessica Kingdon, é um ensaio à Godfrey Reggio
do ultracapitalismo da China contemporânea; “Faya Dayi”, de Jessica
Beshir, em notável preto e branco, investiga a dimensão religiosa do
consumo de khat na Etiópia; em “The Rescue”, Jimmy Chin e Elisabeth Chai
Vaserhelyi reconstituem, em ritmo de thriller, o resgate em 2018 de um
time de adolescentes de uma caverna inundada da Tailândia; quatro
histórias de famílias refugiadas da guerra civil síria são delicadamente
radiografadas por Megan Mylan em “Simples como Água”; e “Writing With
Fire”, de Rintu Thomas, acompanha o único jornal tocado exclusivamente
por mulheres na Índia.
Dispositivos fílmicos bastante distintos caracterizam os dois
isolados semifinalistas voltados para chagas sociais dos EUA.
Estruturado solidamente em arquivos e entrevistas, “Attica”, dirigido
por Traci Curry e Stanley Nelson, reconstitui uma espécie de Carandiru
norte-americano, com a brutal repressão a uma revolta de presidiários em
1971. No tocante “”No Caminho da Cura”, Robert Greene retrabalha
cinematograficamente, com a direta colaboração de seis sobreviventes, o
trauma de abusos pedófilos perpetrados por padres de Kansas City.
É claro que a corrente pandemia não poderia ficar de fora. Tanto “The
First Wave”, de Matthew Heineman, quanto “In The Same Breath – Verdades
e Mentiras da Pandemia”, da sino-americana Nanfu Wang, concentram-se
ambos sobre os primeiros meses da emergência sanitária global. Matthew
mergulha no cotidiano frenético de um hospital no Queens, em Nova York,
enquanto Nanfu se alterna entre as reações oficiais na China e nos EUA.
Sinal dos tempos: você já pode assistir por streaming (Apple TV, HBO
MAX, Netflix) quase metade destes títulos -e até a cerimônia de março a
lista quase se completará. Sim, o documentário ficou mais perto.