Por Amir Labaki
Um
dos ídolos de minha juventude, Yves Montand (1921-1991) faria cem anos
na próxima quarta-feira (13). Até a França, seu país de adoção, pois
nascido Ivo Livi numa família “subproletária” da Toscana italiana,
celebra timidamente a efeméride, com uma exposição em Marselha, cidade
de sua infância e juventude, o relançamento de uma coletânea de canções
(“La Chansonette”), e a estreia do documentário “Montand Est À Nous”
(Montand está entre nós), de Yves Jauland, exibido em julho em Cannes
Classics.
O
rápido esquecimento, em apenas uma geração, do fascínio de Montand
-ator de cinema, cantor, artista engajado- parece simbolizar o declínio
da influência cultural francesa mundo afora no século 21. Em 1982,
abrindo sua maior e única turnê internacional, ele levou nada menos que
14 mil pessoas ao Maracanãzinho no Rio de Janeiro, depois de ter se
apresentado em São Paulo (Teatro Municipal) e Brasília (Teatro
Nacional).
Antes
que o cantor de “Les Feuilles Mortes” e “À Bicyclette”, me encantou o
Montand ator e militante pelos direitos humanos, contra “totalitarismos à
direita e à esquerda”. É uma marca geracional: em meados dos anos 1970,
estava ele no auge de sua carreira cinematográfica, na linha de frente
das batalhas planetárias pelo respeito aos direitos humanos e no pico de
sua popularidade na própria França. Entre 1968 e 1981, Montand se
afastou dos palcos, protagonizando duas dezenas de filmes, entre os
quais quase todos de seus melhores, e se engajando nas causas justas da
hora, da oposição à ditadura militar de Pinochet ao apoio ao
Solidariedade na Polônia ainda dita socialista.
Este
período áureo no cinema deve-se a dois encontros. O principal deles,
segundo o próprio Montand, foi com o diretor franco-grego Constantin
Costa-Gavras. “Antes eu fazia cinema como um diletante”, reconheceu o
ator.
A
parceria se iniciou com o longa-metragem de estreia de Costa-Gavras,
“Crime no Carro Dormitório” (1965), e se repetiu em mais quatro filmes.
Ao centro, a trilogia antiautoritária que nada envelheceu: “Z” (1968),
“A Confissão” (1971) e “Estado de Sítio” (1973).
O
segundo encontro decisivo foi com Claude Sautet (1924-2000).
Considerado por Bertrand Tavernier (1941-2021) como um dos cineastas
franceses mais subestimados dentre os contemporâneos da “nouvelle vague”
que não se filiavam ao movimento, Sautet ampliou a paleta dramática de
Montand sobretudo em “César e Rosalie” (1972) e “Vicente, Francisco,
Paulo e Os Outros” (1974). Se Costa-Gavras é Zola, Sautet é Balzac.
Muito
antes deles, duas mulheres foram essenciais para Ivo Livi se tornar
Yves Montand. Se, recém-chegado em Paris, a cantora Edith Piaf
(1915-1963) foi seu primeiro grande amor, a atriz Simone Signoret
(1921-1985) foi por quase 40 anos sua companheira inseparável.
A
Piaf, Montand deve a introdução ao mundo parisiense do espetáculo e os
primeiros passos em cinema. A Signoret, uma estrela antes que ele, mesmo
a nível internacional (Oscar de atriz em 1959 por “Almas em Leilão”),
deve muitíssimo mais -a começar de uma verdadeira formação intelectual,
pois Ivo deixara a escola aos 11 anos para ajudar no sustento familiar.
Por
quase duas décadas, Montand e Signoret foram companheiros de viagem dos
comunistas franceses, eleitoralmente fortes no imediato pós-guerra. O
documentário de Jeuland apresenta registros inéditos de uma viagem de
quatro meses do casal à URSS e aos países do Leste europeu da então
chamada “cortina de ferro”, realizada apenas um mês depois da invasão da
Hungria em 1956 por tropas soviéticas.
A
gota d’água tardia que os levou à ruptura foi uma nova intervenção da
URSS, desta vez para liquidar em 1968 a primavera democrática na
Tchecoslováquia. Dois anos depois, Montand perderia doze quilos e
passaria os dias com algemas para interpretar o alter-ego do escritor e
dissidente Artur London (1915-1986) na veemente denúncia anti-stalinista
de “A Confissão”. Ator e homem político alcançavam um inédito patamar.
É
pena que, por aqui, quase nada da filmografia de Yves Montand esteja
acessível em streaming ou DVD. Do primeiro período francês, “O Salário
do Medo” (1953), de Henri-Georges Clouzot (1907-1977), traz talvez seu
primeiro protagonismo seguro. Fique atento para reprises do único
triunfo de sua breve incursão hollywoodiana, ao lado de Marilyn Monroe
(1926-1962), em “Adorável Pecadora” (1960), de George Cukor (1899-1983).
A dívida com Costa-Gavras salta aos olhos num de seus últimos
thrillers, “I como Ícaro” (1979), de Henri Verneuil (1920-2002), lançado
aqui pela Versátil.
Ouvi-lo
é felizmente muito mais fácil, nas plataformas digitais de música. O
sedutor canto de Yves Montand, herdeiro de Chevalier e de Trenet,
sequestra-nos os sentidos. Em plena pandemia, eis-nos sob o céu de
Paris.