Por Amir Labaki
Para
2020, “annus horribilis” é pouco. O despreparo global para a primeira
pandemia planetária em um século vitimou pelo coronavírus mais de 1,6
milhões de pessoas, contaminou mais de 75 milhões, levou à quarentena
mais de 2,5 bilhões e provocou a maior crise econômica desde a grande
depressão de 1929.
Pela
primeira vez nos 125 anos desde a primeira projeção pública de filmes,
as salas mundo afora foram forçadas a interromper suas atividades,
colocando em xeque toda a tradicional cadeia econômica do cinema.O
anúncio neste mês de que todo o portfólio de filmes produzidos pela
Warner será em 2021 simultaneamente disponibilizado em streaming pela
HBO Max talvez venha a se tornar o maior símbolo da mudança de
paradigmas no mercado audiovisual provocada pela pandemia da covid-19. É
ainda incerto se a decisão excepcionalmente flexibiliza de maneira
emergencial ou definitivamente liquida a tradicional “janela de tempo”
que preservava a prioridade para os lançamentos em salas de cinema
frente a outros formatos de exibição. Fato é que o modelo de negócios
das salas de cinema, de grandes conglomerados como independentes, vive
sua maior crise de todos os tempos e exige urgente reinvenção.
O
caso brasileiro é ainda mais pungente. A devastação que atingiu em 2020
o circuito cinematográfico de distribuição e de exibição foi
tragicamente antecipada, desde 2019, pela destruição do modelo de
fomento à produção audiovisual concentrada desde a década passada na
atuação da Ancine. A paralisia da agência, ao mesmo tempo de regulação e
de fomento, catalisa um “apagão” na atividade que só encontra paralelo
contemporâneo na ação devastadora do governo Collor, no início dos anos
1990, simbolizada pelo fechamento da Embrafilme (1969-1990).
Se
todo o edifício institucional vai mais uma vez ruir, ou se alguma
solução de compromisso poderá ser pactuada, é a grande incógnita. Aos
interessados, recomendo seguir a serena e minuciosa análise em tempo
real que nos tem sido ofertada, em diversos veículos de informação,
incluindo este Valor, pela crítica de cinema Ana Paula Sousa. Igualmente
dramático é o fechamento lesa-pátria da Cinemateca Brasileira, cujo
destino pende por um fio neste fim de ano em delongadas negociações
junto à Secretária do Audiovisual da Secretária Especial da Cultura do
governo federal.
Ainda
nem tudo são ruínas, para fechar o foco na produção não-ficcional no
país. Alguns marcos históricos merecem ser celebrados, mesmo que seja
temerária qualquer expectativa quanto a imediatas novas conquistas,
preservado o devastador quadro geral.
Discussões
políticas e estéticas à parte, o primeiro triunfo a comemorar é a
pioneira conquista da primeira indicação de um documentário brasileiro
(e latino-americano) como finalista ao Oscar de melhor longa documental,
conquistada por “Democracia em Vertigem” de Petra Costa. Também inédita
e histórica é a escolha do documentário “Babenco: Alguém Tem Que
Escutar O Coração e Dizer: Parou”, de Barbara Paz, como representante
brasileiro na disputa de uma vaga entre os finalistas do próximo Oscar
de melhor filme internacional, em sintonia com a tendência planetária de
romper um estigma que monopolizava a vaga para produções ficcionais,
como demonstram as indicações de “Agente Duplo” (exibido como “O Espião”
na competição do É Tudo Verdade 2020), da chilena Maitê Alberdi,
“Coletivo”, do romeno Alexander Nanau (vencedor internacional do mesmo
festival), e “Noturno”, do italiano Gianfranco Rosi.
Tratando
de reconhecimento internacional, cumpre registrar, sem falsa modéstia,
duas conquistas inéditas alcançadas pelo É Tudo Verdade. Ao alcançar a
marca de 25 edições, o festival se tornou, em junho, o primeiro evento
latino-americano convidado a ser parceiro no Mercado de Filmes do
Festival de Cannes na organização de seu braço documental, o Cannes
Docs, neste ano realizado excepcionalmente de maneira virtual. Já em
novembro, o É Tudo Verdade foi incluído no restrito grupo de 21
festivais internacionais convidados pela Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas de Hollywood a qualificar os títulos selecionados a uma
inédita via expressa para a próxima disputa do Oscar de documentários
de longa-metragem.
Entre
os destaques inovadores da não-ficção no país, louve-se o novo patamar
de profissionalismo em narrativas audiodocumentais estabelecido por duas
produções da Rádio Novelo, “Praia dos Ossos” de Branca Vianna, sobre o
assassinato em 1976 de Ângela Diniz, e “Retrato Narrado” de Carol Pires,
biografando o presidente Jair Bolsonaro. Complementar a este, na
radiografia da cruel condução da pandemia por ele, recomendo assistir na
Globoplay ao devastador “Cercados”, documentário de Caio Cavechini que
transcende seu foco sobre o heroico e humanista trabalho da imprensa
brasileira. É a trágica retrospectiva nacional do ano da covid-19 que
didaticamente deveria ser programada em horário nobre de TV.
A todos, boas -e seguras- festas. Xô, 2020!