Por Amir Labaki
“Claro”
(1975) talvez seja o mais fascinante objeto fílmico não-classificável
dirigido por Glauber Rocha (1939-1981) -e não foram poucos. O próprio
Glauber assim o definiu: “é o meu filme mais livre, no qual eu mesmo me
desmitifico. É um filme político e psicopolítico; não existe divisão
entre cinema e política”.
Um novo documentário
de César Meneghetti, “Glauber, Claro”, reacende o fascínio ao
contextuá-lo tanto dentro da trajetória do cineasta baiano quanto na
cena cinematográfica do período de sua produção. Lançado no Festival
Internacional de Cinema de Roma, o filme tem pré-estreia no Brasil
dentro da corrente Mostra Internacional de Cinema de São Paulo,
apresentada quase exclusivamente on-line neste ano.
Diretor paulista formado
pelo Centro Experimental de Cinema de Roma, com duas décadas de
residência na Itália, Meneghetti confirma-se como guia tarimbado para
refazer o percurso de Glauber durante a realização de seu último filme
de exílio. Para auxíliá-lo, conta com depoimentos carinhosos de
participantes nas filmagens e de quatro dos críticos italianos mais
antenados com a produção brasileira: Adriano Aprá, Bruno Torri, Marco
Giusti e Roberto Silvestri.
O arrocho repressivo no
Brasil pós-AI-5 e a consagração internacional com “O Dragão da Maldade
Contra o Santo Guerreiro” (1969, prêmio de direção em Cannes)
catapultaram Glauber para um longo período internacional durante a
primeira metade dos anos 1970. Três produções estrangeiras vingaram,
entre tantas sonhadas. No Congo, Glauber ataca o colonialismo com “O
Leão De Sete Cabeças” (1970). Na Espanha, realiza em “Cabeças Cortadas”
(1970) uma fábula sobre as ditaduras latino-americanas. Em Cuba, tendo
por parceiro Marcos Medeiros, investiga os destinos do país com o
documentário de arquivo “História do Brasil” (1973-74).
Sediado
a partir de 1974 em Roma, enquanto desenvolve para a RAI um épico
histórico (O Nascimento dos Deuses) jamais concretizado, Glauber tirou
da cartola “Claro”. Incomodado inicialmente pelo aspecto algo cru das
imagens, Adriano Aprá tateou classificando-o como “um filme de família”,
“também um documentário”, até cravar: “um filme militante muito
estranho, um filme demencial”. “Claro” tem sim algo de tudo isso.
Ao centro de tudo, Roma. A
concreta e a mítica. Glauber, equipe e atores como que flanam com a
câmera por toda a cidade, a de cartão postal como o Coliseu e a Fontana
de Trevi, e a de sua cinemateca privada, como a periferia dos filmes de
seu admirado Pasolini (1922-1975).
A capital do ex-império
mundial torna-se cenário de uma parábola entre familiar e política sobre
a luta pela derrocada do sistema capitalista agora capitaneado pelo
império americano. “Roma como o centro da opressão mundial, no que foram
sucedidos pela Inglaterra e pelos EUA”, explica o ex-crítico do diário
romano de esquerda Il Manifesto, Roberto Silvestri.
É Silvestri também que
lembra o parentesco então entre Glauber e Godard em certa forma
independente de produção militante. Protagonista de “Claro” como de “A
Chinesa” (1966), a então namorada de Glauber, Juliet Berto (1947-1990),
simboliza essa jornada comum. Constantemente a acompanhando em cena,
Glauber inaugurava a assinatura com seu corpo e voz que caracterizariam
toda sua produção posterior, como nota a montadora Cristiana
Tullio-Altran.
As lembranças de
intérpretes como Bettina Best e Luiz Maria “El Cachorro” Olmedo, do
diretor de fotografia Mario Gianni e do técnico de som Davide Magara
traduzem-se na tela em cenas com ar de happenings militantes,
corroborando as impressões de Aprá. A atmosfera documental notada por
ele marca sequências como as improvisadas em duas manifestações
trabalhistas de grupos rivais.
No documentário de
Meneghetti, “Claro” surge como a ponte entre o Glauber underground de
“Câncer” (1968/72), rodado pré-exílio mas só nele finalizado, e o
épico-filosófico de “A Idade da Terra” (1980), seu arquipolêmico
filme-testamento. Sem o peso torturado de ambos, em “Claro” um Glauber
mais solto vive -o cinema, a política, o amor.