Por Amir Labaki
Enquanto
se estende perigosamente no tempo e expande intensamente pelo mundo a
preocupação quanto ao destino da Cinemateca Brasileira, parte da seleção
de títulos da recém-encerrada 25ª edição do É Tudo Verdade reafirmou o
papel insubstituível dos arquivos audiovisuais também para a produção
contemporânea de documentários. Nenhuma novidade, quando lembramos o
merecido destaque ao uso criativo de arquivos reconhecido por uma
premiação específica estabelecida no ano passado pelo IDFA, o maior dos
festivais dedicados ao cinema não-ficcional.
Dois
dos filmes da seleção internacional focalizavam precisamente batalhas
para a salvaguarda de patrimônios fílmicos nacionais diante da ascensão
de regimes obscurantistas. Em “O Rolo Proibido”, Ariel Nasr reconstitui a
cruzada pela preservação do acervo da Cinemateca de Cabul frente à
chegada ao poder dos extremistas islâmicos do Talibã, em 1996, no
Afeganistão. Por sua vez, Ehsan Khoshbakht, crítico e curador iraniano
baseado em Londres, recupera em “Filmfarsi” um período de produções
populares da cinematografia de seu país condenado, até mesmo por meio da
perseguição de seus protagonistas, pela instalação do regime radical
xiita a partir da Revolução Islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini
(1902-1989) em 1979.
O espaço desta coluna
seria insuficiente para discorrer sobre todos os belos momentos
cinematográficos estruturados a partir da revisita a materiais
audiovisuais presentes na seleção do festival deste ano. Desculpando-me
desde logo com os realizadores das obras aqui não examinadas, vou me
fixar em cinco soluções dramaticamente distintas que marcaram os filmes
de abertura e de encerramento e três dos longas-metragens destacados
pelos júris do É Tudo Verdade.
Destaco inicialmente
sequências inesquecíveis do trio de filmes brasileiros premiados.
Distinguido por uma menção honrosa, “Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o
Brasil”, de Carol Benjamim, ancora-se firmemente em imagens da televisão
sueca do período dos anos 1970 em que lá estiveram exilados os irmãos
Cid e César Benjamim, respectivamente seu tio e pai.
Quase na metade do filme,
um registro televisivo acompanha na pista do aeroporto de Estocolmo a
ansiosa expectativa de Cid quanto ao desembarque do mano mais jovem que,
preso e torturado aos 17 anos, não via há mais de meia década. Carol
recupera a alegria e a dramaticidade do reencontro ao manter sem cortes a
imagem e o som da câmera que focaliza o tenso Cid na espera, sua
desabalada corrida pela pista em direção ao avião recém-estacionado, o
longo e emocionado abraço em César e a caminhada deles, abraçados, em
direção ao exílio agora comum. Sem interrupções, sem comentários, apenas
o material bruto feito história.
Em “Segredos do Putumayo”,
também destacado por uma menção, Aurélio Michiles realiza uma sutil
urdidura para frisar os ecos no presente das imagens do passado, ao
retraçar a trajetória do pioneiro batalhador pelos direitos humanos,
Roger Casement (1864-1916). Há um requintado e diverso retrabalho de
materiais de arquivo, com uma joia final. Um breve registro fílmico de
um precocemente envelhecido Casement sintetiza a tragédia da perseguição
pelo império britânico que cruelmente lhe extinguiu os dias.
Premiado como melhor longa
brasileiro, “Libelu – Abaixo A Ditadura”, de Diógenes Muniz, estabelece
com precisão o diálogo entre a ciranda de entrevistados e o valioso
arquivo televisivo. Mais até do que as contundentes imagens externas de
manifestações e repressão, brilham sobretudo as entrevistas do irônico
Mino Carta com um jovem par de lideranças universitárias, formado pelos
irmãos Josimar e Ricardo Melo, e com o truculento coronel Erasmo Dias.
Por vezes, as imagens do
passado já pertencem à cinemateca de nossas lembranças. Em “Wim Wenders,
Desperado”, Eric Friedler e Andreas Frege mergulham generosamente na
filmografia do mestre alemão. Numa sequência, um corte ilumina toda a
cumplicidade entre Wenders e seu colega geracional Werner Herzog. Eles
se reencontram para uma conversa para o documentário, Herzog assume
nunca ter visto a entrevista que dera a Wenders em “Quarto 666” (1982) e
discorre sobre o pouco que lembra. Corte e ei-lo, quarenta anos atrás,
em sua divertida participação, jogando o jogo, sempre a seu modo.
Por fim, voltemos ao
começo, no filme de abertura do chileno Patrício Guzmán, “A Cordilheira
dos Sonhos”. Contrapondo à sua reflexão de cineasta que teve de se
exilar, Guzmán celebra um acervo tão visceral quanto desconhecido de um
colega que se recusou a partir: Pablo Salas.
Uma
sequência é cirurgicamente editada: Salas narra o risco pessoal
enfrentado para realizar seu acrobático registro da multidão de presos
políticos num estádio chileno, já adiantada a ditadura pinochetista -e
um corte nos revela suas trêmulas imagens da incessante repressão.
Aquele modelar homem da câmera e seu tesouro audiovisual ainda privado
simbolizam o valor incomensurável do patrimônio mundial dos sons e
imagens das cinematecas formais e informais que fragilmente resistem às
intempéries da história.