Por Amir Labaki
Trinta e cinco anos após sua morte, a serem completados em 10 de outubropróximo,
Orson Welles (1915-1985) está em toda parte. Ei-lo em novos
documentários, na tardia tradução brasileira de uma coletânea de contos
que o ostenta como personagem (“As Histórias de Pat Hobby”, de Scott
Fitzgerald, Todavia), num clássico restaurado em DVD (“O Terceiro
Homem”, 1949, de Carol Reed, lançado pela Versátil), e até inspirando um
rapper.Começando pelo mais próximo, uma nova abordagem sobre a
atribulada jornada brasileira de Welles em 1942, para rodar o
documentário inacabado “It’s All True” (É Tudo Verdade), está entre os
concorrentes da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema, que pode ser conferida
on-line até dia 20. Em “A Jangada de Welles”, Firmino Holanda e Petrus
Cariry lançam novas luzes sobre a passagem dele pelo Ceará para
reconstituir a saga do quarteto de jangadeiros que, em 1941, por mais de
dois meses enfrentou o oceano numa viagem até o Rio para exigir
melhores condições de trabalho ao já ditador Getúlio Vargas (1882-1954).
Em
questões de memória e contexto se encontram os grandes achados de
Holanda e Cariry. É emocionante assistir aos depoimentos de L. G.
Miranda, Otacília Verçosa e Blanchard Girão, entre outros, testemunhando
os passos do “muito alto”, “muito branco” e “muito educado” Welles
pelas ruas de Fortaleza e pelas areias da praia de Mucuripe. De
particular interesse é ainda compreender quão vulnerável
profissionalmente era o cotidiano daqueles pescadores em jangadas -e
como a especulação imobiliária os expulsou de Mucuripe, ainda antes que,
no início dos anos 1990, estreasse no Ceará a versão póstuma de “It’s
All True” organizada por Richard Wilson, Myron Meisel e Bill Krohn.
Por
sua vez, a 77ª edição da Mostra Internacional da Arte Cinematográfica
de Veneza, o primeiro dos maiores eventos do calendário internacional a
viabilizar sessões presenciais, apresentou nesta semana, para um público
sobretudo local e europeu (dadas as restrições de viagens ditadas pela
pandemia), a estreia de “Hopper/Welles”. A assinatura é do diretor de
“Cidadão Kane” (1941) e as imagens, de seu fiel diretor de fotografia,
Gary Graver (1938-2006), mas os responsáveis pela formatação da
descoberta são principalmente o produtor polonês Filip Jan Rymsza e o
montador americano Bob Murawski.
Ao
colaborarem na finalização de “O Outro Lado do Vento” (2018), a radical
radiografia da Hollywood do começo dos anos 1970 que Welles deixou
inacabada, Rymsza e Murawski toparam com o material bruto de uma
conversa filmada em 1970 entre ele e o ator e diretor Dennis Hopper
(1936-2010). Era o encontro de dois cineastas que, com um quarto de
século e uma guerra mundial de distância, abalaram a indústria americana
de cinema pela independência de suas revolucionárias estreias como
diretores: Welles com “Cidadão Kane”, um ensaio dramático sobre o poder
nos EUA, Hopper com “Sem Destino” (1969), um lisérgico mergulho na
América hippie.
Não
surpreende a curiosidade recíproca, a começar do fato de terem ambos
escrito, interpretado e dirigido seus retumbantes batismos atrás das
câmeras. Welles escalou Hopper para uma breve ponta na festa
hollywoodiana em torno do qual gravita “O Outro Lado do Vento” e
aproveitou a oportunidade para registrar um longo papo, sintetizado
agora num documentário de 130 minutos. Impossibilitado como tantos de
conferi-lo no Lido veneziano, apenas reporto alguns dos temas adiantados
como centrais a “Hopper/Welles”: o papel do diretor de cinema, entre
deus e mágico; a violência nos EUA tumultuados pelos protestos contra a
Guerra do Vietnã; a liberação sexual e a honestidade política no país
então presidido por ninguém menos que Richard Nixon (1913-1994).
Nestes
dias em que Donald Trump, buscando a reeleição em novembro, emula como
farsa a bandeira eleitoral de Nixon como candidato “da lei e da ordem”,
Welles certamente estaria radiante com a adaptação de um de seus
discursos políticos radiofônicos pelo rapper Logic na faixa “Obediently
Yours”, lançada há pouco mais de um mês encerrando o álbum “No
Pressure”. Logic sampleia e comenta por instrumentos uma contundente
fala de Welles, proferida em agosto em 1946 mas que parece escrita hoje,
sob o signo do movimento Black Lives Matter e dos atuais protestos
contra a violência policial que prossegue vitimando regularmente
afro-americanos.
“Ódio racial não é da natureza humana, ódio racial é o
abandono da natureza humana”, clama Welles, reagindo ao espancamento
levado a cabo por um policial branco que cegou o afro-americano Isaac
Woodward Jr. (1919-1992), um veterano da Segunda Guerra. “Onde o racismo
é aceitável, há corrupção”, prossegue o diretor da primeira montagem de
“Macbeth” com um elenco exclusivamente afro-americano, nos idos de
1935. “Os odiadores raciais precisam ser detidos. Os linchamentos devem
ser abolidos. Os assassinatos devem ser vingados”. Orson Welles, quem diria, nunca foi mais pop.