Por Amir Labaki
Um novíssimo documentário
que entrevista vinte montadores (como se dizia antigamente) ou editores
(no jargão corrente) de filmes, “Na Ilha” de Julia Bernstein e Vinicius
Nascimento, merece um público mais amplo do que o do que restrito grupo
de interesse dos que lidam profissionalmente com cinema. Sua estreia
aconteceu anteontem e de hoje a domingo ainda é possível assistí-lo no
Canal Curta!.
Eles mesmos profissionais da
edição, Julia e Vinicius convidaram duas dezenas de colegas de arte e
ofício para entrevistas em seus locais de trabalho, a “ilha” do título. O
arco geracional é amplo, assim como o regional, e variados são os
estilos de trabalho, como demonstrado pelas obras montadas por cada um
que dialogam com os depoimentos. Cada montador merece um episódio
autônomo, com duração média de três minutos.
“Na Ilha” ilumina o processo
de edição primeiro pelo talento de sua própria composição. Os vinte
perfis sintetizam organicamente a identidade pessoal e profissional dos
retratados, sem preocupação com biografias e currículos, apresentados
por simpáticas cartelas antes dos créditos finais. Em cada episódio, o
discurso do entrevistado encontra correspondência nos breves mas
certeiros trechos dos filmes que ajudaram a criar. Bem-resolvidos os
desafios destas microedições, Julia e Vinícius as articulam com
inteligência e ritmo na macroedição do filme por inteiro, sem
compromisso com a cronologia biográfica dos entrevistados e sim com a
sequência dramática ditada pela potencial articulação de um episódio com
o seguinte.
O próprio documentário
espelha assim em sua arquitetura o mosaico de visões expressas nas
entrevistas. Como não poderia deixar de ser, algumas aportam elaborações
abstratas sobre a montagem, enquanto outras se ancoram em questões mais
concretas do ofício. Questões históricas -técnicas e estéticas- também
afloram.
Diante de sua ilha de
edição, Giba Assis Brasil (Ilha das Flores) garante não ter nenhuma
saudade da moviola, a mesa de montagem utilizada na era do filme em
celuloide, aposentada pelo cinema digital, enquanto Mair Tavares (O Anjo
Nasceu) argumenta que talvez houvesse mais tempo de reflexão na época
do manuseamento mais lento do negativo fílmico, em contraste com a era
mas ágil do corte por programa de computador. O decano Máximo Barro (A
Margem), por sua vez, confessa que seu “encanto era a montagem
americana”, isto é, a invisibilidade buscada pela montagem no cinema
clássico hollywoodiano, levada a colapso sobretudo pela emergência dos
“cinemas novos” da década de 1960.
Eduardo Escorel (Terra em
Transe) desmitifica o ofício: “Você escolhe e você combina. Se você faz
bem, o resultado vai ser bom”. Já para Quito Ribeiro (Paraísos
Artificiais), “a montagem é um processo vivo e infinito”. “Eu vivo em
estado de montagem”, confessa-se Jordana Berg (Últimas Conversas).
Por sua vez, Natara Ney (O
Rap do Pequeno Príncipe Contra As Almas Sebosas) aconselha: “Nunca se
contente com o caminho fácil. Arrisca, arrisca sempre”. “O mais
importante é estar sempre aberto para aquilo que está chegando”,
concorda Luiz Pretti (Baixo Centro), entrevistado com o irmão também
editor Ricardo. Já para Pedro Bronz (A Farra do Circo), “já está tudo no
Vertov, o que dá mais para fazer do que aqueles russos malucos
(fizeram)”?
Daniel Rezende (Cidade de
Deus) e Karen Akerman (O Processo) frisam a importância crucial da
montagem para a construção dos personagens. Vânia Debs (Baile Perfumado)
lembra que muitas atuações são salvas na ilha de edição: “A montagem
faz milagres, mas não faz todos os milagres”. “Você acha muitas cenas
neste espaço onde não é necessariamente o lugar para procurar”, constata
Marcio Hashimoto (Era o Hotel Cambridge).
Para Joana Collier (Paixão e Virtude), o essencial para montagem é captar a atmosfera do material bruto.
“Se o plano é bom, não
corta”, sustenta Karen Harley (Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te
Amo). Sérgio Mekler (Campo Grande) diz muitas vezes preferir para a
edição a expressividade dos ruídos à música.
Transitando como tantos dos
entrevistados entre distintos registros fílmicos, Marília Moraes
(Elena) testemunha: “O documentário me ajuda na ficção, para eu
conseguir mostrar a realidade nas cenas. A ficção me ajuda no
documentário, pois é um caso de estruturação mesmo”. “Na Ilha” bem
demonstra a segunda observação, como também combina as duas grandes
escolas de montagem segundo Eduardo Serrano (Bacurau): os
“estruturalistas”, que partem de uma visão macroscópica inicial do
filme, e os editores “de fluxo”, que partem do microcosmo de cada cena.
Em pouco mais de setenta minutos, Julia e Vinicius tornam-nos todos
espectadores mais argutos.