Por Amir Labaki
Nenhum cineasta foi recebido com mais longos e calorosos aplausos no 69o Festival de Cannes, ao menos nas sessões que presenciei no mês passado, do que o diretor francês Bertrand Tavernier. O ciclo paralelo Cannes Classics exibiu em pré-estreia especial sua “Viagem Através do Cinema Francês”, um personalíssimo documentário de arquivo em que revisita a produção gaulesa entre 1930 e 1970.
A fonte de inspiração assumida são os dois documentários semelhantes realizados por Martin Scorsese, primeiro enfocando o cinema americano (1995) e depois o italiano (2001). Em Cannes, assistimos à primeira versão, de três horas e quinze minutos, agendada para estrear nas salas francesas em outubro próximo. O projeto final é o de uma série para a TV com 9 horas de duração.
“Viagem Através do Cinema Francês” apresenta 582 trechos de 94 filmes, editados durante 80 semanas. Como fizera Scorsese, Tavernier pessoalmente ocupa-se da narração. Mas suas jornadas cinefílicas têm desenvolvimentos muito distintos, tanto em ênfase como em estrutura.
Scorsese iniciou seus documentários com pitadas autobiográficas, prosseguindo para análises marcadas pela teoria do autor, numa narrativa de maneira geral didática e cronológica. Tavernier, por sua vez, jamais se afasta do tom memorialístico, indo e vindo no tempo e recheando seus comentários com anedotas pessoais sobre os protagonistas por ele escolhidos. “Eu queria dizer ‘obrigado’”, explica o cineasta logo na apresentação.
Nascido em 1941, filho de um escritor que participou da resistência antinazista em Lyon, Tavernier estudou direito, foi assessor de imprensa de cineastas como Claude Chabrol (1930-2010), assistente de direção do mestre do policial francês, Jean-Pierre Melville (1917-1973), e crítico de cinema da revista Positif, até consolidar-se entre os principais realizadores do imediato pós-“nouvelle vague”.
Do documentário (A Guerra Sem Nome, 1992) à aventura de época (A Filha de D’Artagnan, 1994), sua paleta como cineasta é ampla. Basta lembrar talvez seus filmes mais conhecidos por aqui, como o jazzístico “Por Volta Meia-Noite” (1986) e o drama contemporâneo “A Isca”, que lhe valeu o Urso de Ouro de Berlim em 1995. Nisso Tavernier se assemelha mais aos diretores hollywoodianos (não à toa rodou filmes também em inglês) do que à tradição francesa, desafiando classificações.
Tanto ele quanto Scorsese articulam suas narrativas a partir de artistas, não obras. Uma diferença é contudo essencial: o americano concentra-se em cineastas, enquanto o francês não limita seu panteão a diretores. “Quis frisar como o cinema é um arte coletiva”, explicitou Tavernier em entrevista à revista Télérama.
Mais até do que nas homenagens particulares a estrelas como Jean Gabin (O Demônio da Algéria, 1937) e Eddie Constantine (Alphaville, 1960) e a compositores como Maurice Jaubert (O Atalante, 1934) e Joseph Kosma (Portas da Noite, 1946), essa preocupação afirma-se ao discutir o injusto menosprezo crítico reservado contemporaneamente a Marcel Carné (1906-1996), diretor de clássicos como “Os Visitantes da Noite” (1942) e “O Boulevard do Crime” (1945). Sem plenamente reentronizá-lo entre os grandes, Tavernier reverencia o talento de Carné, frisando sobretudo sua abertura para uma plena colaboração artística, não apenas na essencial parceria de maturidade com o roteirista Jacques Prévert (1900-1977), mas ao abraçar uma réplica improvisada no estúdio pelo roteirista Jean Aurenche (1903-1992) para “Hotel do Norte” (1938) ou alterar seus planos de direção em “Trágico Amanhecer” (1939) a partir de uma sugestão do cenógrafo Alexandre Trauner (1906-1993).
Em sua seleção de realizadores, Tavernier me parece colocar acima de tudo o prazer hitchcockiano da “mise-en-scène”, evitando contudo um mestre paradigmático como Max Ophuls (Conflitos do Amor, 1950). Lá estão os incontornáveis Jean Renoir (1894-1979) e “A Grande Ilusão” (1937), Melville e “Bob, O Jogador” (1956), Jean-Luc Godard e “Acossado” (1960).
Mas o diretor de “L.627 – Corrupção Policial” (1992) reserva também capítulos nobres para tratar de cineastas esquecidos ou subestimados. Tavernier classifica como “o príncipe dos realizadores marginais” Edmond T. Greville (1906-1966), destacando seu drama pré-ocupação nazista “Menaces” (Ameaças, 1940). E encerra o filme recuperando seu contemporâneo Claude Sautet (1924-2000), louvando seu policial “Como Fera Encurralada” (1960).
Não se busque em “Viagem Através do Cinema Francês” um ensaio histórico. Bertrand Tavernier nos convida a visitar sua cinemateca sentimental. É tão mais belo assim.