Amir Labaki
Há quase meio século uma cineasta brasileira desenvolve uma das mais incisivas e vigorosas obras audiovisuais das Américas: Helena Solberg. Este reconhecimento demorou a consolidar-se apenas devido ao fato de ela ter passado longe do Brasil cerca de metade deste período, e consequentemente produzido no exterior mais de metade de seus filmes. Antes tarde do que nunca, a 19a. edição do É Tudo Verdade, que se inicia na próxima semana, dedica a ela sua retrospectiva brasileira.
Helena privilegiou em sua trajetória o documentário mas, como companheira de viagem tardia do Cinema Novo, se equilibrou como vários dos próceres do movimento (Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman) entre os trânsitos de imagens ficcionais e documentais. Esta alimentação mútua caracteriza seus principais filmes.
Em seu período de formação ainda no Brasil, já germinavam as raízes do cinema militante e feminista que veio a caracterizar a obra desenvolvida por Helena em sua longa estadia nos EUA, para onde partiu no auge da repressão da ditadura militar e só retornou de vez apenas quando soçobrado o regime autoritário. À opressão da mulher, tematizada já em seu curta documental de estreia (A Entrevista, 1966), Helena dedicou sua primeira trilogia norte-americana (The Emerging Woman/The Double Day/Simplesmente Jenny), de impacto imediato em seu país de adoção. Desde sempre, seus filmes comprovam que militância feminista e produções independentes podem funcionar como estímulos formais, e não camisas-de-força.
Helena podia estar longe mas nunca distante. Sua obra progressivamente frisou seus laços com o Brasil, cercando-o desde experiências similares na América Latina, como a das mulheres exploradas de “The Double Day” (A Dupla Jornada, 1975) e a das esperanças de uma sociedade mais justa na Nicaraguá sandinista (From The Ashes – Nicaraguá Today/A Partir das Cinzas –Nicaraguá Hoje, 1982).
O reencontro com nosso país não tardaria, a partir do começo dos anos 1980, para a realização de três obras ainda de cineasta visitante ao período final e à ressaca da ditadura. É especialmente oportuna, entre os balanços de 50 anos da ditadura militar iniciada em 1964, a revisita na retrospectiva ao primeiro filme que trouxe Helena de volta ao país, “The Brazilian Connection –The Struggle for Democracy” (A Conexão Brasileira – A Luta pela Democracia, 1983).
Realizado em parceria com David Meyer para a principal televisão pública dos EUA (PBS), o documentário contextualiza para o telespectador americano como se estabeleceu e desenvolveu o então regime militar, comandado pelo último dos generais-presidente, João Batista Figueiredo (1918-1999). O que mais chama atenção é a desfaçatez com que mente para as câmeras o ex-embaixador dos EUA no Brasil de 1961 a 1966, Lincoln Gordon (1913-2009). Até a morte, em livros e depoimentos, Gordon procurou minimizar o papel ativo exercido por ele em apoio às diversas conspirações, civis e militares, que se consolidaram no golpe de 31 de março de 1964.
Na entrevista a “The Brazilian Connection”, o diplomata aposentado afirma ter tido participação apenas reativa, atendendo a pedidos de opositores a Goulart. Sob a forma de documentos oficiais dos próprios EUA, a História cuidou de crescer-lhe o nariz para a eternidade. A Casa Branca (sob John F. Kennedy e Lyndon Johnson), a CIA e a embaixada no Brasil podem não ter liderado a conspiração, mas dela foram agentes ativos –ainda que, como comentei na semana passada, sem o protagonismo defendindo pelo documentário de Camilo Tavares, “O Dia que Durou 21 Anos”.
Doze anos mais tarde, Helena teve a sacada de examinar o mito Carmen Miranda como espelho imperfeito de seu próprio regresso definitivo ao país, evitando assim ouvir que não suportava mais o breque do pandeiro. “Carmen Miranda - Banana Is My Business” (1995) ajudou a reoxigenar o documentário nacional, contribuindo para o processo de revitalização ainda hoje em curso, mas curiosamente vários dos elementos que pareceram então de “aggiornamento” retomavam práticas presentes já em seu primeiro curta documental, “A Entrevista”, como a encenação, a autoinserção e a transparência do dispositivo.
Desde então, passadas quase duas décadas, cada um de seus filmes –em estreita parceria há mais de trinta anos com David Meyer- reafirma-se como gesto de coerência e reinvenção: a literatura feminina de juventude de seu primeiro longa-metragem ficcional, “Vida de Menina” (2004); o amor ao verbo, em especial na forma brasileira, de “Palavra (En)Cantada” (2009); a preocupação com o desenvolvimento social, em “A Alma da Gente” (2013).
Não poderia haver complemento melhor para esta retrospectiva do que o estudo escrito pela jornalista mineira Mariana Tavares, “Helena Solberg –Do Cinema Novo ao Documentário Contemporâneo”, que o festival tem o privilégio de lançar em parceria com a Imprensa Oficial. Quando nos perguntarem a partir de agora qual cineasta brasileira foi nossa Sara Gomez, nossa Estela Bravo ou nossa Marina Goldovskaya, não teremos mais por que hesitar. É só responder: simplesmente Helena.
