Por Amir Labaki
Se
havia algum álbum de música brasileira que estava a merecer um
documentário sobre sua gravação, “Elis & Tom” (1974) se posicionaria
entre os favoritos de qualquer pesquisa com especialistas. No calor da
hora, há quase meio século, Roberto de Oliveira gravou um “making of”
para a TV Bandeirantes, ponto de partida de “Elis & Tom – Só Tinha
de Ser com Você”, que codirige com Jom Tob Azulay (Os Doces Bárbaros) e
estreia em salas na próxima semana.
Gravado nos estúdios MGM em Los Angeles entre 22 de fevereiro e
9 de março de 1974, “Elis & Tom” foi lançado com imenso impacto
crítico e comercial em agosto do mesmo ano. A faixa de abertura era nada
menos que “Águas de Março”, imortalizada também em filme num delicioso
registro que marcou época na televisão e pode ser conferido no YouTube.
Nada mais natural que o documentário se inicie com cenas de bastidores
dos ensaios para sua gravação e se encerre com o vídeo clássico nos
créditos finais.
O
filme logo define sua estrutura, focada no grande quadro da história da
produção do álbum, alternando-se entre depoimentos atuais colhidos por
Roberto de Oliveira, com ênfase em participantes do projeto, e cenas das
filmagens em 16mm do período da gravação. Registros de arquivo, muitos
internacionais, enriquecem os sintéticos resumos que contextualizam o
momento das carreiras às vésperas daquele “encontro improvável”.
Ninguém
doura a pílula. Elis Regina (1945-1982) e Tom Jobim (1927-1994) mal se
conheciam e não exatamente se adoravam do ponto de vista pessoal. Tom já
se consagrara como um dos maiores compositores do planeta e até
dividira em 1967 um álbum com Sinatra; Elis estava instalada entre as
grandes cantoras brasileiras e ganhava reconhecimento internacional,
como no show em 1968 no Olympia parisiense. Contudo, a conjuntura
profissional não era brilhante para ambos. Não surpreende assim que a
tensão dominou ao menos a fase inicial dos trabalhos, quase cancelando
tudo.
A
sacada da reunião tem seus créditos divididos entre o produtor musical
André Midani (1932-2019) e o músico e compositor Roberto Menescal, que
comandavam a gravadora de Elis, e o próprio Roberto de Oliveira,
empresário da cantora à época. Depois de cantar nas Olímpiadas do
Exército em plena ditadura na era Médici (1969-1974), Elis precisava de
um “reposicionamento da carreira”, lembra Oliveira. Por sua vez, o
corroteirista Nelson Motta recorda que Tom, baseado em Los Angeles,
“estava muito abatido” pois “a bossa nova tinha acabado” e “ninguém
tocava a música dele”.
Concebido
com um álbum para celebrar 10 anos de Elis no selo Polygram -portanto
um disco dela com Tom como convidado especial-, estabeleceu-se de saída
um braço de ferro entre ele, senhor soberano de suas gravações, e o
pianista César Camargo Mariano, então marido e parceiro da cantora,
indicado como arranjador. Jobim soube da escalação, e estrilou, apenas
quando da chegada deles a Los Angeles.
Às
entrevistas de Menescal e de Mariano somam-se, na reconstituição do
desconforto, as de dois dos instrumentistas bambas que distinguiram a
gravação, o guitarrista Hélio Delmiro e o baterista Paulo Braga. O
material bruto registra pontualmente a atmosfera difícil e sua gradual
superação. Quanto à captação do clima do estúdio, à moda dos Beatles em
“Get Back” (2021) de Peter Jackson, o ponto alto no documentário
acompanha a sublime interpretação de “Chovendo na Roseira”.
Aliás,
“Elis & Tom – Só Tinha de Ser Com Você” seria enriquecido se
apresentasse uma radiografia de como se escolheu aquele maiúsculo
repertório, um pequeno cancioneiro Tom Jobim. Em suas 14 faixas se
sucedem obras-primas, da inédita “Águas de Março” ao fecho de ouro com a
regravação de “Inútil Paisagem”, parceria de Tom com ninguém menos que
Aloysio de Oliveira (1914-1995), o mítico produtor, compositor e cantor
brasileiro radicado nos EUA, responsável pela produção de “Elis &
Tom”. Sim, algo na linha dos minuciosos estudos de caso, em torno de um
disco clássico da música brasileira por episódio, da extraordinária
série “O Som do Vinil” de Charles Gavin no Canal Brasil.
O
convite de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay para viajar em seu
túnel do tempo nos aproxima do mistério profundo de uma experiência
musical única, encantada e encantadora, hoje como há meio século. “Cada
respiração naquele álbum, cada nota de piano, está no lugar certo”, bem
descreve o crítico americano Jon Pareles. Assista, ouça e veja: é um
resto de mato na luz da manhã.