Por Amir Labaki
É como um pesadelo de corpo
ereto e olhos abertos, um filme macabro de imagens fixas e dor em
movimento, que se visita a exposição fotográfica de Evandro Teixeira
sobre o Brasil da ditadura em garroteamento e o Chile da barbárie em
instalação, atualmente no CCBB do Rio depois de passar pelo Instituto
Moreira Salles (IMS) de São Paulo. Não poderia haver mostra mais
certeira quando se completa no dia 11 da próxima semana o cinquentenário
do golpe militar que derrubou o governo democrático de Salvador Allende
(1908-1973), levando o presidente ao suicídio no Palácio de La Moneda
sob ataque e à instalação por 17 anos do regime brutal do general
Augusto Pinochet (1915-2006).
Do ponto de vista histórico, a
intersecção entre os períodos autoritários brasileiro (1964-1985) e
chileno (1973-1990) encontra-se esmiuçada em “O Brasil Contra a
Democracia: A Ditadura, O Golpe no Chile e A Guerra Fria na América do
Sul”, de Roberto Simon (Companhia das Letras, 496 págs, 2021, R$
117,90). Um monumento jornalístico da resistência àquela quadra de
trevas pode ser contemplado online na cerrada primeira página da edição
de 12 de setembro de 1973 do censurado Jornal do Brasil, então sob a
batuta editorial do mestre Alberto Dines (1932-2018). Trata-se de um
epitáfio cívico sob a forma de uma capa de jornal, sem manchete ou foto,
tomada de alto e baixo por quatro colunas de texto informativo.
Várias das imagens de Evandro
Teixeira agora expostas foram pela primeira vez publicadas pelo mesmo
Jornal do Brasil, responsável também por seu envio ao Chile para a
cobertura fotográfica do golpe de Pinochet. Inédita até agora, a série
que imortaliza o velório e o enterro do poeta Pablo Neruda (1904-1973),
morto onze dias após o assassínio da democracia, arrepia como um requiém
silencioso para o humanismo no continente – por toda parte, por longo
período. “Isto é quase tudo o que resta de Salvador Allende, eleito
presidente do Chile em 1970”, inicia a narração da cinebiografia
“Salvador Allende” (2004), de Patrício Guzmán. As imagens exibem “uma
faixa presidencial, um relógio de pulso, uma carteira e outros
pertencentes pessoais do ex-presidente”, descreve o historiador Fábio
Monteiro.
Prossegue a voz em off: “Em 11 de
setembro de 1973 ele foi derrubado por um golpe militar. Em seu corpo
inerte, foram encontrados esses objetos. História desperdiçada. A
ditadura de Pinochet acabou com a nossa democracia, cuja construção
levou dois séculos. Ele destruiu dia a dia, durante 18 anos, o país que
eu conhecia. Milhares de chilenos foram assassinados, torturados e
centenas de milhares foram exilados”.
Neruda, Allende. Teixeira, Guzmán.
Dois lutos. Um elaborado no calor da hora, o outro, em nova e não
última tentativa, trinta anos depois. A pergunta de Monteiro para Guzmán
pode ser adaptada para Teixeira: “Seria possível cinematografar o
indizível?”.
De certa forma, é essa a indagação
que norteia os dois volumes lançados por Fábio Monteiro em torno dos
documentários de Patrício Guzmán: “Allende: A História de Salvador
Allende no Cinema de Patrício Guzmán” (Paco Editorial, 2018, 218 págs.,
R$ 42,90) e “O Cinema de Patrício Guzmán – História e Memória Entre as
Imagens Políticas e A Poética das Imagens” (Paco Editorial, 2022, 410
págs., R$ 69,90). Desenvolvidos ambos como pesquisas acadêmicas na área
de História, têm rigor sem aridez e iluminam tanto o grande quadro dos
contextos das trajetórias do presidente e do cineasta quanto a
especificidade das construções estéticas de cada filme.
Leia-se o primeiro como um estudo
de caso e o segundo como uma análise ampliada para três trilogias, todas
reconhecendo Allende como o “leitmotif” da obra de Guzmán. O tríptico
original, “A Batalha do Chile” (1975, 1976, 1979), radiografa as
conquistas e conflitos do governo da Unidade Popular (1970-1973) e, com
empenhada participação dos EUA, sua erosão e derrubada.
Batizada certeiramente por
Monteiro como “a trilogia dos testemunhos”, a segunda é formada por
“Chile, A Memória Obstinada” (1997), “O Caso Pinochet” (2001) e o citado
“Salvador Allende” (2004). Apresentada por fim como “a trilogia da
imensidão íntima”, “em função do aprofundamento de seu veio poético e
autorreflexivo”, Monteiro analisa a partir da “fenomenologia elemental”
de Gaston Bachelard “Nostalgia da Luz” (2010), “O Botão de Pérola”
(2015) e “A Cordilheira dos Sonhos” (2019).
“A Batalha do Chile”, “Nostalgia”
e” Botão” foram lançados em DVD pelo IMS. As fotos de Evandro Teixeira
podem ser visitadas até novembro no CCBB do Rio e foram editadas no
catálogo “Chile 1973”, também pelo IMS. É ver e aguçar os ouvidos: como
diz Guzmán, o passado não passa.