Por Amir Labaki
A celebração do documentário
nacional foi o eixo temático da 22ª cerimônia de entrega do Grande
Prêmio do Cinema Brasileiro na noite do último dia 23 na Cidades das
Artes, no Rio de Janeiro. O foco sobre o cinema do real foi anunciado já
pela abertura, com uma breve sequência extraída de “O Homem da Câmera
de Filmar” (1929), de Dziga Viértov, seguida por imagens do filme
inaugural de nossa cinematografia, rodadas em 1898 na Baía da Guanabara
pelo pioneiro Affonso Segretto.
A festa de premiação com o Grande
Otelo, apresentada com pique e carisma por Cláudia Abreu e Silvio
Guindane, desenvolveu-se com raro dinamismo, a partir do roteiro do
documentarista Bebeto Abranches, da direção de Batman Zavareze e do
inspirado comentário musical das montagens com marcos do documentário
nacional apresentado ao vivo pelo pianista Vitor Araújo. Um feito e
tanto para mais de três horas de apresentação dos prêmios da Academia
Brasileira de Cinema e Artes Visuais em nada menos que 29 categorias.
O grande vitorioso do ano foi o
cativante drama mineiro de costumes “Marte Um”, de Gabriel Martins, da
produtora Filmes de Plástico. Além do prêmio de melhor filme, venceu os
de direção, roteiro original, ator (Carlos Francisco), ator coadjuvante
(Cïcero Lucas), fotografia, montagem e som. O drama histórico “A Viagem
de Pedro”, de Laís Bodanzky, veio a seguir, com três triunfos: direção
de arte, figurino e maquiagem.
Já a adaptação do clássico do
teatro para crianças de Maria Clara Machado, “Pluft, O Fantasminha”,
dirigido por Rosane Svartman, ganhou o Grande Otelo de melhor filme
infantil e o de efeitos especiais, cabendo a “Tarsilinha”, de Célia
Catunda e Kiko Mistrorigo, o de melhor animação. Dira Paes levou o de
melhor atriz pelo papel-título de “Pureza”, drama de denúncia da
escravidão rural realizado por Renato Barbieri, enquanto Adriana Esteves
venceu o de melhor atriz coadjuvante por “Medida Provisória”, a
distopia antirracista de Lázaro Ramos. (Devido ao limite de espaço, não
deixe de conferir a lista completa dos premiados no site da Academia).
Numa noite dedicada ao
documentário, o prêmio de melhor longa documental distinguiu “Kobra Auto
Retrato”, de Lina Chamie; o de melhor curta de não-ficção, “Território
Pequi”, de Takumã Kuikuro; e de melhor série documental, “"Pacto Brutal -
O Assassinato de Daniella Perez", de Tatiana Issa e Guto Barra para a
HBO Max. Um trio que reafirma a pluralidade contemporânea da produção
nacional.
O ápice da comemoração foi a
atribuição do Grande Otelo pela carreira ao decano dos documentaristas
brasileiro, o paraibano radicado em Brasília Vladimir Carvalho. Aos 88
anos, Vladimir está há quase sete décadas na linha de frente do cinema
nacional. Ninguém melhor do que ele radiografou, em filmes de intensa
pesquisa poética e histórica, a sociedade e a cultura nordestina (O País
de São Saruê; O Homem de Areia) e a experiência brasiliense
(Conterrâneos Velhos de Guerra; Rock Brasília), sem falar de sua
contribuição essencial para clássicos de outros parceiros, como
“Aruanda” (1959), de Linduarte Noronha, um dos curtas detonadores do
Cinema Novo, e “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho,
para o qual foi fundamental tanto em suas filmagens originais,
interrompidas pelo golpe militar de 1964, quanto para sua reinvenção, no
auge da abertura dos anos 1980.
A influência de Vladimir Carvalho
para o desenvolvimento do documentário no país transcende sua
extraordinária filmografia exclusivamente dedicada à não-ficção,
incluindo sua liderança no desenvolvimento do curso de cinema da UnB,
desde o início dos anos 1970, e seus próprios escritos, já reunidos em
cinco imprescindíveis volumes, sendo o mais recente a antologia “Jornal
de Cinema” (É Tudo Verdade/Imprensa Oficial, 2015). Como lembrei no
agradecimento à inesquecível homenagem que também recebi na mesma
cerimônia, pela criação do É Tudo Verdade em 1996, meus encontros com
ele, sempre vibrante e otimista, e com Eduardo Coutinho, sempre cético e
agudo, há exatos trinta anos quando dirigia pela primeira vez o MIS de
São Paulo, foram centrais na catalisação do processo que culminou na
fundação do festival como janela nobre anual para o cinema documentário.
Em seu tocante fala ao receber o
Grande Otelo, com a sabedoria habitual Vladimir deu a concretude dos
testemunhos ao supletivo histórico exibido na tela da Cidade das Artes
durante a cerimônia. Ele sacou da memória o encontro há sessenta anos,
no mesmo Rio, com outro mestre, Humberto Mauro, e com os então jovens
estreantes, Carlos Diegues e Leon Hirszman, então estes às voltas com a
realização do clássico cinemanovista de episódios “Cinco Vezes Favela”
(1963). Num instantâneo, de mãos dadas, quase um século dos 125 anos do
cinema brasileiro. Como recordou a Academia, há mesmo muito a celebrar
-sem esquecer das batalhas da hora a vencer: cota de tela, direitos
autorais, regulação do streaming. Viva Vladimir!