Por Amir Labaki
Depois
do belo documentário sobre Nelson Pereira dos Santos lançado por Aída
Marques e Ivelise Ferreira em maio passado no Festival de Cannes, não
menos oportuna é a pré-estreia de “Roberto Farias – Memórias um
Cineasta”, de sua filha Marise Farias, na corrente 51ª edição do
Festival de Gramado, que se encerra neste fim de semana. Quase
contemporâneos, Nelson e Roberto desenvolveram obras muito distintas
que, cada qual a seu modo, com ênfase no realismo social o primeiro e no
espetáculo o segundo, contribuíram para ampliar a paleta fílmica
brasileira e para, a um só tempo, elevar o status social no país da
produção cinematográfica e seu reconhecimento na esfera internacional.
Nem
tudo é tão simples. Sim, suas formações fílmicas foram mesmo quase
polares. O neorrealismo italiano foi a influência central já para os
dois primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos (Rio, 40 Graus, 1955,
e Rio, Zona Norte, 1957), enquanto as chanchadas da Atlântica
representaram a universidade de cinema no início de Roberto Farias (Rico
Ri À Toa, 1957, e No Mundo da Lua, 1958).
Há
contudo ressonâncias, não do ponto de vista estritamente formal, mas
sim na participação de ambos na maturação, entre meados dos anos 1950 e
60, daquilo que Glauber Rocha chamou de “filme brasileiro de denúncia
social” ao comentar “Selva Trágica” (1964), de Farias.
“Assalto”,
um policial baseado em caso real, tem ecos do díptico carioca de
Nelson; rodados em locações opostas, mas primos nas origens literárias,
“Selva” trata da exploração dos trabalhadores do mate no Brasil Central,
a partir do romance de Hernâni Donato, enquanto “Vidas”, a partir de
Graciliano Ramos, radiografa os deserdados do sertão nordestino. É a
partir do golpe militar de 1964 que as curvas novamente se afastam,
reordenando-se de forma coerente com as experiências formativas.
Às
veredas de Nelson Pereira dos Santos me dediquei ao comentar aqui há
poucas semanas “Vida de Cinema”. “Memórias de um Cineasta” é igualmente
iluminador quanto à trajetória de Roberto Farias (1932-2018), a partir
de entrevistas exclusivas e de arquivo, de um manuscrito memorialístico
inédito do diretor, lido por seu irmão e parceiro, o ator e cineasta
Reginaldo Faria, de uma narração autobiográfica da própria Marise, e de
novos depoimentos.
Cinéfilo desde
a infância modesta em Friburgo, Farias (com um “s” a mais do que o
familiar por erro de escrivão) confirmou a vocação ao encontrar na
cidade, ao fim da adolescência, um dos principais diretores de
chanchadas (Carnaval no Fogo; Aviso aos Navegantes), ninguém menos que
Watson Macedo (1918-1981). Aos 18 anos, se mudou para o Rio, aprendendo o
ofício nos bastidores da Atlântica. A assistência de direção foi seu
diploma, distinguindo Farias os aprendizados com três cineastas: na
Atlântica, o próprio Macedo (“intuição pura”) e J. B. Tanko (“um
técnico”) e, fora do universo das comédias musicais na Maristela, Carlos
Hugo Christensen (“botava tudo no papel”).
A
experiência com as chanchadas terminou de forjar uma radical fidelidade
ao espectador. “O cinema que eu faço”, frisa Farias, “precisa ser o
mais claro possível, precisa não chatear o público”. Com exceção de
“Selva Trágica”, “talvez o filme em que coloquei mais de minha
sensibilidade estética”, sua filmografia de apenas treze títulos
coroou-o de sucessos, incluindo a trilogia protagonizada entre 1967 e
1971 por Roberto Carlos.
Seu
êxito o credenciou a tornar-se o diretor-geral da Embrafilme em seu
período áureo entre 1974 e 1978, no governo do general-presidente
Geisel, quando a ocupação de mercado pela produção brasileira atingiu o
patamar inédito de cerca de um terço das bilheterias anuais. Demitido
por telefone, Farias jamais retomou plenamente sua carreira no cinema,
realizando apenas “Pra Frente, Brasil” (1982), sobre a tortura por
paramilitares durante a ditadura, censurado por oito meses antes do
lançamento, e “Os Trapalhões no Auto da Compadecida” (1987).
Sua
guarida por mais de três décadas foi a Rede Globo, com a direção de
minisséries (As Noivas de Copacabana; Memorial de Maria Moura) e de
episódios de programas como “Você Decide”. “Sempre tentei fazer, na
televisão, cinema. Coisa que é muito difícil para um cineasta”,
reconhecia.
Da lenta agonia da Embrafilme, liquidada por uma canetada
do recém-empossado Fernando Collor em sua breve e funesta Presidência, à
retomada a partir do modelo apoiado pela Lei do Audiovisual de 1993,
Roberto Farias não voltou à tela grande, mas exerceu sempre liderança
ativa nos debates sobre a reconquista do mercado. É pena que não
contemos mais com sua voz serena, ainda mais nesta complexa nova era do
streaming. Mas ouvi-lo no delicado retrato dirigido por Marise, assim
como reencontrar o vigor apaixonado de seus filmes, por certo ajuda.